Já pensou em uma sala de conteúdos com roteiristas brasileiros que pensam em diversidade, equidade e conteúdos multétnicos? Bom, não acho que teríamos unanimidade nessa resposta. Enquantos muitos de nós sequer consideramos essa possibilidade, muitos outros já agem pensando nesse assunto há anos. É o caso, por exemplo, do diretor e roteirista Marton Olympio, que, entre outros projetos, fez parte do “Narrativas Negras”, da FLUP – Festa Literária das Periferias.
Foi pensando nisso que a VIS Américas, uma divisão da ViacomCBS, decidiu reunir roteiristas brasileiros para criar a primeira sala de conteúdo dedicada à diversidade e equidade. Para Federico Cuervo, SVP, Diretor Geral do VIS Américas, esse é o primeiro passo para trazer um conteúdo mais diversificado e que represente culturas em todo o mundo: “Esta iniciativa começa no Brasil, mas será replicada em outras regiões para enriquecer nossa oferta de produtos com diferentes perspectivas que se identificam com etnias e grupos diversos“. Confira abaixo trechos da entrevista exclusiva concedida ao TNM.
Narrativas Negras
Para Marton Olympio, a presença de pessoas negras transformando o cenário audiovisual é um caminho sem volta, até porque somos mais da metade da população brasileira. O “Narrativas Negras” é uma representação deste mercado, que exige cada vez mais uma pluralidade de vozes ao contar histórias. Ele ressalta que seu objetivo é fazer com que no futuro o nome do projeto venha a ser “Narrativas Brasileiras” ou mesmo “Narrativas”.
Você já pensou no aumento da presença de pessoas negras nas produções tanto nacionais quanto internacionais? Parece que, assim, devagarzinho, algumas coisas estão mesmo começando a mudar. Logo de cabeça me vêm duas produções: nas séries internacionais, temos “Por Trás de Seus Olhos”, disponível na Netflix, que fala sobre “uma mãe solo se envolve em um jogo perigoso ao ter um caso com o chefe e fazer amizade com a enigmática esposa dele.” Essa série foi inspirada no livro de Sarah Pinborough. Eu dei uma olhada nas primeiras páginas do livro e não achei menção sobre a personagem Louise ser negra (inclusive tem até uma passagem em que a amiga se refere a ela como “Branca de Neve”. Também tem uma menção sobre ela ser o oposto da esposa do homem com quem ela se envolve, que é bem magra, e essa parte não corresponde a personagem interpretada por Simona Brown porque ela também é bastante magra).
Já nas séries nacionais, pensei em “Cidade Invisível”, quem tem a atriz Jéssica Córes interpretando Camila/Iara. E, eu sei, a série teve várias críticas pela (falta de) representatividade indígena ou sequer de um consultor. Porque, se na vida real a gente diz que às vezes falta só um amiguinho pra dizer “cara, não faz isso”, nas telinhas deve ser a mesma coisa, né? Não. É preciso um time diverso porque, qualquer que seja o grupo que a gente vá descrever, esse grupo é diverso. Não somos todos iguais. Daí a importância de celebrar a diversidade e a equidade.
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Sala de conteúdo “Narrativas Negras”
É por isso que a sala de conteúdo “Narrativas Negras” convida pessoas de diferentes contextos, com diferentes histórias de vida e perspectivas para criar conteúdos diversos. Porque histórias sobre pessoas negras, por exemplo, não envolvem falar exclusivamente sobre racismo ou violência.
De acordo com Olympio, a sala de conteúdo tem como objetivo a criação de conteúdos diversos, que envolvem produções de terror, comédia, romance e, sim, até mesmo suspense policial porque ele dá o recado: “a gente pode falar sobre o que a gente quiser”. Mas ter pessoas negras para além do elenco faz toda a diferença no modo como essas histórias são contadas.
Marton será o responsável por comandar a equipe, que também conta com Eliana Alves Cruz, Estevão Ribeiro, Lidiane Oliveira e Renata Diniz. Além de pensar em conteúdos que podem envolver até reality shows, eles também serão consultores para demais projetos em andamento ligados ao tema.
“Procuramos formar uma equipe plural dentro da diversidade. Temos uma escritora, a Eliana; um quadrinista, o Estevão; a Lidiane, que vem do teatro; e a Renata, premiada em roteiros”, ressalta Marton. “Somos diferentes em gênero, origens… Como realmente é a experiência negra no Brasil”, diz Eliana. “Somos diferentes até no tom de pele”, complementa Lidiane. O grupo pretende subverter as expectativas quando se fala em Narrativas Negras. “Queremos contar nossas histórias para o mundo todo“, finaliza Marton. Conheça um pouco mais de cada membro da sala.
Marton Olympio
Diretor e roteirista com experiência em direção de atores e roteiros na EICTV de Santo Antonio de Los Baños, Cuba. Foi roteirista do longa Sequestro Relâmpago (Globo Filmes) e das séries Santo Forte (AXN) As Canalhas (GNT), Natalia (TV Brasil / Globo Internacional), Prata da Casa (FOX) e Jungle Pilots (Universal), além de ser diretor e roteirista das séries Musas (Canal Brasil) e Série Paixão FC. Desenvolveu os roteiros da nova temporada de Cidade dos Homens (2018) e da série Rio Negro (2018), ambas da Rede Globo.
Foi um dos selecionados em 2011 pelos Laboratórios Bolivian Labs International
Roteiros, em Cochabamba, na Bolívia, e em 2012 escreveu e dirigiu o piloto da série
Paixão Futebol Clube. Em 2013, foi finalista, com a série Perdidos, do Programa de
Roteiro da Globosat, recebendo roteiro de Marta Kauffman (Amigos), Barry
Schkolnick (A Esposa Boa) e Dan Halsted.
Também coordenou o Laboratório Novos Talentos da Gullane e foi tutor por três anos
no Flup Narrativas negra, dando origem a novos escritores e escritores negros no
Brasil. Este ano também será o diretor e roteirista da série A Dona da Banca (CineBrasilTV).
Marton, que começou sua carreira escrevendo sobre telecurso e agora já tem mais de 25 anos de experiência, relembra que, no início, quando “era tudo mato”, ele era a única pessoa negra presente em muitos ambientes e muitas vezes foi usado como token.
Renata Diniz
Renata participou como roteirista da sala de roteiro da série de comédia ficcional “República 60”, do Núcleo Creativo Entretiempos, com Jayme Monjardim. Também foi roteirista da série de animação infantil “Shaya y el Espejo”, produzida pelo Stud 10. Escreveu “Almanaque Saúde” e “Futura Profissão”, tanto no Canal Futura quanto no Cozinhadinho, série infantil veiculada pela TV Brasil, pela produtora CineGroup. Escreveu o roteiro do documentário Jardim Piloto, em produção, para a produtora Roman Produções.
Para Renata, que começou sua carreira com muita escrita institucional, a sala de conteúdos funcionará como um multiplicador. Sabe aquela história de “uma pessoa sobe e puxa as outras”? Então. Ela mesma, que também é diretora, conta que só depois de ser responsável por um curta que “deu uma bombada” saiu de uma grande produtora para se dedicar a projetos que até então eram paralelos.
Eliana Alves Cruz
Eliana estreou na literatura com o romance Água de Barrela, baseado na trajetória de sua família desde o século 19, na África. Foi a vencedora da primeira edição do Prémio Literário Oliveira Silveira, atribuído pela Fundação Cultural Palmares. Publicou textos nas coleções dos Cadernos Negros (Quilombhoje); Lost: Histórias para crianças que não têm tempo (Editorial Imam). Ele também escreve para o site The Intercept, abordando questões relacionadas ao racismo e à escravidão.
Na entrevista, Eliana reforçou a importância da diversidade de gênero, tom de pele, realidade social e experiência profissional dentro do próprio grupo: “Uma das questões que eu acho que pega muito no Brasil é que as pessoas olham pras pessoas negras como se elas fossem um bloco único.” Para ela, as pesssoas se acostumaram ao “negro único” na televisão, mas nós precisamos de outros de nós ao nosso lado porque trabalhamos muito melhor no coletivo.
Eliana conta que sua carreira começou no jornalismo esportivo, mais especificamente na natação, onde ela é membra da Federação Internacional de Natação, e que pela profissão já viajou para “seis Olimpíadas e não sei quantos Pan-Americanos”. Mas foi depois de encarar seu sonho de escrever um romance que passou a se dedicar mais profundamente ao audiovisual. Seu propósito é o oposto ao do racismo institucional: ao invés de cortar cabeças, ela quer trazer cada vez mais pessoas negras para essa arte.
Estevão Ribeiro
Estevão é escritor, roteirista e escreve quadrinhos há 20 anos. Além disso, trabalha no mundo do audiovisual há 8 anos – e é fotojornalista. Estevão tem cerca de 200 mil livros vendidos. É também autor de “Rê Tinta”, série de contos e livros sobre o empoderamento do negro.
Estevão reforça que o projeto não é novo. Ele mesmo já havia se reunido anos atrás com Marton em um evento em que era possível contar nos dedos a quantidade de pessoas negras presentes. A partir daí, Marton se uniu a FLUP e passou a formar cerca de 35 pessoas – algumas já até premiadas – anualmente para que cada vez mais tenhamos pessoas negras comprometidas e capacitadas a contar histórias. Em suas palavras, é um verdadeiro aquilombamento.
O início da carreira de Estevão é inspirador: ele lia Mauricio de Souza e sonhava em ganhar prêmios como os que ele ganhava. Mas no contexto em que ele estava inserido, no meio de uma favela, seu sonho estava um pouco mais distante da realidade do criador da Turma da Mônica. A vantagem é que sua vivência o permitiu trazer histórias que não vemos em outros quadrinhos, em especial agora que ele “achou sua turma”.
Lidiane Oliveira
Lidiane é atriz e roteirista, formada em Interpretação Cênica. Participou do filme “A
Vida Invisível” de Karim Aïnouz (2019), com a divulgação do “WhatsApp Carnaval”
(2020). Em 2020 participou de uma Roda da Escrita com Marton Olympio, começando
a escrever para roteiros.
Fundadora, atriz e roteirista do “Coletivo Arame Barbado”, atuou e assinou
coletivamente seu primeiro piloto da série “Placa Mãe” (2020) patrocinada pelo Itaú e
Redes da Maré.
Lidiane iniciou sua carreira no teatro em 2009 e atuou em dez espetáculos e, quando a questionei sobre, ela disse: “a gente sempre quis responder essa pergunta” e que já até tinha um texto preparado. Mesmo assim, emocionada, ela aponta que, depois de trabalhar com teatro por mais de 15 anos e com a escrita sendo parte de sua vida no decorrer dos anos, algumas experiências de vida – em especial sua experiência na academia – a fizeram pensar que ela não sabia escrever.
Assim, mesmo depois de ser encorajada a escrever pelo diretor de uma das peças das quais participou, ela ainda não se via neste lugar. Tanto que, quando mandava sua biografia, sempre se apresentava como “atriz” ou “modelo”, nunca como “roteirista”. Ah, a síndrome da impostora, tão comum entre mulheres negras, não é mesmo…
Em um momento da entrevista, Lidiane disse: “é muito louco eu ter tido esse pensamento de se eu poderia escrever sobre a minha própria história”. Porque ela chegou a pensar que o conteúdo para o audiovisual teria que ser ficção e isso não fazia sentido porque nós temos muitas histórias para contar. E chegou a nossa história de contar, afinal, nossa história já é contada faz tempo – mas não em nossas próprias palavras.