Era madrugada do dia 13 para o dia 14 de fevereiro de 1977. Se passaram 41 anos da morte de quem catou palavras para reciclar histórias, Carolina Maria de Jesus. Nunca mais precisou encontrar papelão, saco de pão, a própria mão para fazer de papel. Quando assinou seu despejo da vida, apesar da pobreza, deixou grande herança: suas histórias.
A mulher negra nascida numa comunidade rural de Minas Gerais, cerca de vinte e cinco anos após a abolição da escravatura, quis se mudar para São Paulo. Aqui, sofreu o desespero do quarto Canindé. Lá eram despejadas as pessoas pobres, junto ao entulho e à bagunça, bem longe da sala de visitas – o centro da cidade -, onde tudo é beleza e riqueza. Foi ali naquele quarto de despejo que pensou até em suicídio:
“24 DE JULHO Como é horrível levantar de manhã e não ter nada pra comer. Pensei até em me suicidar. Eu me suicidando é por fim a deficiência de alimentação do meu estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome. Os meninos ganharam uns pães duros, mas estavam ‘recheiados’ de pernas de baratas. Joguei fora e tomamos café. Botei o feijão pra cozinhar.”
Carolina Maria de Jesus escrevia sobre qualquer superfície a difícil e dura vida de quem nada tinha além das palavras. A mãe de José Carlos, João e Vera Eunice era catadora. De vento, de realidade, de sonhos. Mas para evitar a fome à qual deu a cor amarela, precisava catar também papel, lata, plástico. Os cadernos, reutilizava: abrigava histórias como a dos pães ‘recheiados’ de baratas.
A dieta era restrita às carnes, a não ser às de barata. Não porque era vegetariana ou vegana. A família de quatro pessoas precisava de proteína para fortalecer a carcaça, mas a indústria não oferece carne à carne mais barata do mercado.
“19 DE SETEMBRO […] no frigorífico eles não põem mais lixo nas ruas por causa das
mulheres que catavam carne podre pra comer”.
Carolina não só escrevia a vida. Também cantava com uma voz forte e ancestral: “é triste a condição do pobre na terra”. Afinada, a mulher negra lembrava o quanto rico dá o tom da vida do pobre, desde a guerra que o rico institui para o pobre guerrear e morrer até a necessidade do pobre em pensar no feijão enquanto ricos pensavam nas questões da nação.
Quando pensou que seria rica, após descoberta por um jornalista, deixou a favela do Canindé. Suas palavras a tiraram de lá. A mulher do quarto de despejo era agora conhecida. Chegou a jantar nas mesas caras, se hospedou em hotéis bonitos, conheceu lugares inesperados. Mas sem sequer perceber, de repente, não tinha lugar para ficar. Apedrejada pelas personagens reais de suas histórias, era quase hora de por fim ao enredo.
Não sabia que, mesmo pobre, mais tarde seria enredo de escola de samba. Seria pergunta-problema – e também solução – de teses e mais teses de mestrado e doutorado. Carolina Maria de Jesus enobreceria os olhos de quem, com o olhar, percorresse seu quarto de despejo. E assim, Carolina Maria de Jesus, do quarto Canindé, que viveu entre a fome amarela, os papéis de pão, as baratas e os três filhos se tornou eterna.