Eu conheço um bom número de mulheres negras, dentre elas, eu, obviamente. E elas são múltiplas, complexas e muito diferentes, apesar de algumas similaridades, como, por exemplo, a guerra diária travada contra o racismo e o machismo. Seja consciente ou inconscientemente, lá estão elas travando suas pelejas particulares, ou nem tanto, pra serem respeitadas, amadas, vistas, enfim, humanizadas…
Tudo isso faz de nós verdadeiras guerreiras, e não entendam isso como um elogio, não é. É sobrevivência!
Sofremos micro e macroagressões diárias, e nos fortalecer é parte importante da nossa sobrevivência, afinal, viver em uma sociedade estruturada de forma tão hierarquizada, em que ser mulher e negra é desvantagem, imaginem unir os dois em um só?
Mas não entendam isso como um modo de categorizar dores e opressões. Não é um ranking de quem sofre mais, e ninguém ganha com isso, acreditem!
Mas é sobre como as opressões se estabelecem e nos marcam e como estamos ressignificando tudo isso, sobrevivendo a tudo isso.
A sociedade diz que nossos cabelos não são bons o bastante? Bom, pois vamos exibi-los cada vez mais alto e, quando possível, em turbantes enormes e bem coloridos! Sim, porque somos lindas e nossos cabelos são as melhores molduras para nossos rostos!
Nossos corpos são objetificados, nossa humanidade e individualidade ignoradas? Bom, estamos tomando o mercado de trabalho, estamos bem preparadas, estudando mais, e exigindo respeito, inclusive melhores salários. Não somos corpos para o gozo alheio, nossos corpos e vidas não são dos outros, não são objetos para o uso alheio, não são para o cuidado dos outros, são nossos e estamos de inúmeras formas nos posicionando, sim.
Mas ainda somos múltiplas, diversas: com cores diferentes, cabelos diferentes, vivências e contextos diferentes.
Somos indivíduos tentando ser vistos em coletivo, mas ainda indivíduos.
E parte do que queremos é representatividade, nos ver por aí, ver nossos rostos, nossas cores, que, apesar de diversos, ainda negros.
Como bem nos mostra a sociedade, nos categorizando assim que colocamos nossos rostos no mundo. Seja uma pele mais clara, mais escura, cabelos encaracolados, cacheados ou crespos, etc.; ainda somos negras e, desse modo, ainda sofrendo as mazelas dessa sociedade racista, mesmo que em graus e modos diferentes.
E a mídia reflete exatamente isso! Como um termômetro mal ajustado e mal direcionado de uma país “doente”, que simplesmente ignora a maioria de sua população – sim, porque somos a maioria –, num processo exclusivista e elitista que remonta o século XIX, continua determinando lugares, papeis que simplesmente não nos cabem mais!
Então, numa tentativa de representatividade mal-ajambrada, tendenciosa e desnecessária, lá estamos nós, protagonizando uma novela – Malhação – que, mesmo sendo uma atriz negra com cabelo e traços mais “aceitáveis socialmente”, ainda como empregada, ainda se envolvendo com o homem rico, ainda a velha e cansada fórmula da gata borralheira.
Porque, apesar de termos tomado escolas, passarelas, universidades, tribunais, ministérios, etc.; apesar de estarmos gritando por mais dignidade e representatividade; posicionando-nos em coletivo para, enfim, termos nossas individualidades respeitadas; para a mídia e para uma grande parcela da sociedade brasileira com seu pensamento colonialista, nós ainda não saímos da cozinha.
Portanto, não nos enganemos, porque não importa se o cabelo dela não é crespo, se o nariz não é largo, não importa se toda a nossa diversidade não se encontra contemplada nela, ela ainda é nós; é como a mídia–sociedade ainda nos vê: na cozinha esperando o príncipe encantado que irá finalmente nos salvar de nós mesmas…
E, para mim, é sobre isso que precisamos falar!
Siméia Mello é negra e feminista. Mestra em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e revisora de texto. Está sempre discutindo educação, feminismo e racismo. É muito interessada nas lutas contra as opressões e sensível ao ser humano e as suas inúmeras questões.