Hoje, a coluna do jornalista Ancelmo Gois, trouxe a informação de que todos os cinco roteiristas negros que faziam parte da sala de criação da série de ficção sobre a vida da vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em março de 2018, pediram demissão. O texto, escrito pela jornalista Telma Alvarenga, traz a informação de que a equipe, toda formada por profissionais negros, na maioria mulheres, se demitiu por divergências na condução da narrativa sobre a vida da vereadora. A questão aqui é, quais foram essas divergências?
Tudo começou, na verdade, no fatídico dia 14 de março de 2018. Sim, essa história começou naquele dia, pois a morte da vereadora e as circunstâncias em si, causaram comoção nacional e em todo o mundo, o que, claro, disparou o alerta da classe artística, mais precisamente dos diretores e produtores do audiovisual brasileiro, formado em 97,9% por pessoas brancas, segundo pesquisa recente da própria ANCINE. A mesma pesquisa aponta que 75,4% do audiovisual é formado por homens brancos e outros 19,7% é ocupado por mulheres brancas. Apenas 2,1% dos 142 filmes lançados comercialmente na época do estudo havia sido produzido por homens negros. Mulheres negras? Nada.
Pois bem, voltando ao caso Marielle, adivinha quem resolveu encabeçar a série sobre a vereadora? Um homem branco, o mesmo que romantizou a violência da polícia carioca e que, quase, colocou a culpa nos negros por serem mortos pela polícia que mais mata no Brasil: a do Rio de Janeiro.
José Padilha, o diretor de Tropa de Elite, o filme que fez turbinar os concursos para a entrada na policia militar e, especialmente, no BOPE, foi esse “vi$ionário”, que, do alto do seu privilégio branco e seu brilhantismo como diretor de audiobooks, viu a grande oportunidade de limpar sua barra com o alto escalão da esquerda caviar brasileira, a que compõe os 97% do audiovisual tupiniquim.
Como se isso, por si só, não fosse desrespeitoso o suficiente com a memória de Marielle, cria e defensora dos morros que Padilha oprimia em seus filmes, aos gritos e tapas do Capitão Nascimento, Padilha trouxe para seu time uma mulher branca para o ajudar com a missão de ele próprio se tornar palatável a frente de uma história como essa.
Claro, pessoas pretas de todo o Brasil se manifestaram contra essa loucura e, mais uma vez, trouxeram a pergunta: por que pessoa pretas não podem contar suas própria histórias?
Simples. Porque contar histórias é um lugar de privilégio, de destaque e dá dinheiro.
A história de Marielle, uma mulher preta, bisexual, periférica ativista e defensora dos direitos humanos, jamais poderia ter sua biografia, ou mesmo uma ficção inspirada em sua vida, escrita e dirigida por um homem branco, rico, hétero e com opiniões tão questionáveis sobre pessoas pretas e periféricas. Jamais.
Depois de todo asco gerado e de todo transtorno causado pela notícia de que José Padilha iria dirigir uma série sobre Marielle, eles resolveram se mexer. De maneira questionável, mas resolveram se mexer para aparentar uma preocupação legítima com a causa. Sim, aparentar, porque não há uma preocupação real. Nunca houve. Se houvesse, não precisaria de todo o burburinho e desconforto para que apenas depois pudessem pensar em fazer algo. Poxa, são tão geniais e não conseguem ver o óbvio?! Tendemos a acreditar que é um movimento calculado. Do tipo: vamos tentar, se colar, colou.
Vamos divagar aqui sobre o que achamos que deve ter acontecido, para esses cinco roteiristas, heróis, pudessem abrir mão de seus empregos para não fazerem parte dessa situação absurda. São apenas conjecturas, fechamos os olhos e nos imaginamos em meio aos corredores da Globo, entrando em uma sala de roteiristas.
Contrataram cinco pessoas negras para compor a sala de roteiros e “corrigir o erro” de não terem feito isso logo de cara. Já que não passou…
Mas, como já era esperado, foi como se eles tivessem usado um espaço onde guardavam caixas e equipamentos quebrados, mandaram limpar, botaram umas mesas e umas cadeira e tacaram o povo preto lá dentro, na frente de uns computadores velhos para escreverem a história de Marielle. Esse povo preto, competente como só, começou a escrever a história que deveria mesmo ser contada sobre uma mulher preta, bisexual e periférica, com todo o brilhantismo que essa mulher tinha e que foi apagado, ao menos fisicamente, com nove tiros.
Quando começa a chegar o material desse povo preto, que sabe falar com propriedade sobre demandas e vivencias pretas, o pai do Capitão Nascimento não gostou. Por que ele não gostou, já que essas pessoas estão lá para escrever? Porque, voilá, ele já tinha a história pronta em sua cabeça branca e limitada, tanto em quantidade de cabelos quanto de brilhantismo. Não havia no material dos pretos offs melodramáticos e carregados pelos graves A La Selton Mello, lubrificados por pigarro de nicotina que dá aquela aveludada que envolve. Havia a história nua e crua, aguda e estridente de uma mulher que, mesmo morta, segue movimentando estruturas do poder desse país bolsonarista e que já fugiu, há muito, da política, apenas.
José Padilha, do alto de seu privilégio branco, dono da história de Marielle (seja lá como isso possa ser possível), que apresentou a “ideia” de fazer um produto audiovisual sobre a vida da vereadora, começou a não concordar com absolutamente tudo que o time de pretos, os da salinha de arquivos velhos, escrevia. Não porque ele é genial, mas porque é difícil para um homem branco ver um negro escrevendo melhor do que ele. É ainda mais difícil para ele ver mulheres pretas escrevendo melhor do que ele. A gente entende isso, sério. É difícil mesmo, ainda mais ver pessoas medíocres ganhando dinheiro e prestígio em nossas costas.
“Falta drama aqui, precisamos falar da morte, da morte, da morte”, esbraveja ele, num acesso de total abstinência por tiros porrada e bomba. Desde aquele telhado de Narcos, na cena em que Pablo Escobar foi assassinado, que Padilha não ouve um único estampido, não vê sangue. Isso o deixa muito mal.
Os roteiros, escaletas e argumentos vão e voltam uma centena de vezes, reuniões são feitas e nada de o nosso gênio, o Tarantino brasileiro, aprovar nada. Mas por que diabos ele não aprova?
“Cadê a cena do carro branco saindo, o Cobalt prata seguindo, a perseguição frenética na orla de Copacabana, o cara de uma perna só correndo até o carro branco e atirando com uma submetralhadora 134 vezes?”, pergunta ele, o Clint Eastwood tupiniquim.
“Mas não foi isso que aconteceu”, diz um preto lá no fundo.
“A gente ainda estava na cena em que ela manda outro vereador calar a boca, quando ele a interrompeu, em pleno plenário da câmara dos vereadores, na frente de todo mundo”, avisa outro preto.
“Já disse que não é isso, vocês fazem tudo errado”, grita ele, em um rompante de fúria e joga sobre a mesa 122 páginas de um roteiro já finalizado e aprovado pela emissora.
Ele não precisava desses caras, nem os queria por perto. Essa foi uma tentativa apenas de salvar algum provável investimento já feito, chamando pretos fodas, bem intencionados e bem preparados para escreverem algo que não seria usado. O tokenismo gritou muito alto, aqui.
Claro, estamos aqui, repito, fazendo conjecturas do que aconteceu quando a gente fechou os olhos e imaginou o que pudesse estar rolando naquela sala de roteiros fake (pra eles) que os brancos criaram. Isso já estava óbvio que não daria certo, e não dará, pois as peças são erradas para completar o quebra-cabeças. Não há qualquer possibilidade de dar certo. Não, pessoas brancas não podem e não devem escrever histórias de pessoas pretas. Ponto.
Muito tem se falado sobre posição e comportamento antirracista, principalmente após a morte de George Floyd e da força ganha pelo movimento Black Lives Matter pelo mundo. Mas, incrédulos como somos, e não sem razão, só acreditaremos em antirracismo quando brancos começarem a ceder mais do que suas contas de Instagram para negros “invadirem” sem nenhuma remuneração, até porque isso já mostrou ser zero eficaz. Vocês, brancos, precisam abandonar essa postura de “nós deixamos vocês fazerem”. Sério que vocês acham que a gente não percebe quando somos usados como tokens? Estamos chegando perto demais, eles estão acuados, abrindo apenas uma brecha da porta e querendo deixar apenas que “respiremos” um pouco do frescor dos seus ares condicionados, depois de um dia de verão de 50 graus na sombra, no Rio de Janeiro, após termos descarregado um caminhão de pedras. Mais um.
Só acreditaremos que a coisa está mudando de verdade quando negros estiverem ganhando dinheiro para mostrar, de fato, sua arte, e não apenas para validar as “brilhantes” ideias dos brancos de ganhar dinheiro com nossas histórias. A escravidão não acabou, ela só está mais high tech, mais moderna. Continuam roubando nossos corpos, estuprando-os, alimentando-nos mal e nos colocando para trabalhar de graça para eles. Continuam tirando o melhor e o pior de nós em prol de suas realizações pessoais.
Só acredito em antirracismo quando o Padilha, ou qualquer outro, fizer como o Brad Pitt que produziu o filme Selma, arranjou o dinheiro, tirou o time dele de campo e assistiu pretos brilharem contando as suas próprias histórias. Isso que ele fez só é necessário porque ainda, tanto aqui como lá, é mais difícil acessarmos o dinheiro para fazermos esses filmes e séries. A história de Marielle é uma história real, não pertence a ninguém, apenas a ela. Seu legado, esse sim, pertence a todos nós, pretos. Sim, isso mesmo que você entendeu, apenas uma mulher preta e periférica, de preferência lésbica ou bisexual poderia contar de maneira fiel e respeitosa a história dela. Ela merecia muito mais que isso, merecia ser retratada de maneira justa, digna, empoderadora e inspiradora para outras mulheres e meninas que poderiam, no futuro, assistir essa obra. Mas, o trabalho de destruição das histórias e vidas negras segue a todo vapor. Escolhem dois ou três atores negros, dois ou três roteiristas negros para dizerem que não são racistas, e seguem faturando, ficando com o grosso, desfrutando de seus lugares intocáveis e gritando que foi golpe. O racismo no Brasil é muito mais do que chamar um negro de macaco na rua. Isso machuca, mas o que mais causa dano é esse, o racismo que tira o lugar de fala, que tira o privilégio, o protagonismo e, consequentemente, o direito de vivermos de nosso trabalho com arte, de contar nossas histórias, de massagearmos também os nossos egos nos tapetes vermelhos por aí. Não adianta nada chegar no red carpet e gritar “Lula Livre” se não dão a mínima se os pretos seguem presos ou não. Porra, quero ter um Leão de Ouro em casa, um Emmy, um Oscar, um Kikito. Eu quero. Mas, a gente ainda está lutando pra escrever umas linhas em troca do plano de saúde da firma. (Já soube que o da Globo é muito bom). Não há qualquer possibilidade de isso dar certo, já que está claro que não há qualquer preocupação, de fato, com pessoas negras. Há um esforço enorme em manter os privilégios e os lucros. Ações antirracistas só serão bem-vindas se não ameaçarem o posto que eles ocupam.
Vocês conseguem imaginar a importância do ato dessa equipe que pulou fora? Porra, ainda demos um voto de confiança (de novo), acreditamos que haveria uma boa vontade, que tudo poderia ser diferente dessa vez. Mas, não.
Esses cinco roteiristas (vou até mandar fazer uma arte sobre eles), tiveram uma enorme atitude de coragem e abriram mão de tudo que pudesse ser para benefício próprio, em prol de algo muito maior que é o legado de Marielle, em respeito a isso. Esse foi um grito de liberdade que vai culminar no fracasso total dessa obra, caso ainda saia. Aconselhamos a senhora Antônia Pellegrino, que acha que deveria haver um Spike Lee Brasileiro para poder estar à altura dela ou de Padilha, a desligar as máquinas, voltarem as caixas e arquivos empoeirados para a salinha que os pretos não quiseram mais ocupar e abandonarem de vez essa série. Essa história não é de vocês. No que depender de nós, será um fracasso retumbante, pois sabemos que não será a história real de Marielle. Sabemos, eles já tem tudo arquitetado e acham que não precisam mesmo da gente.
Essa gente descolada, com seus cabelos desgrenhados e barba por fazer, que cola com a galera do PSOL do Leblon e grita “Fora Bolsonaro”, precisa entender que são exatamente iguais aos que governam esse país atualmente, só que diferentes. Vocês não atiram na cabecinha pois aprenderam a ganhar dinheiro com a militância. Para vocês, preto bom é preto vivo. Mas, vocês são tão ou mais nocivos quanto os Bolsonaros genocidas. Larguem o osso, cuidem de suas vidas e apenas não impeçam que cuidemos das nossas de maneira digna, isso já vai ajudar bastante. Esqueçam a história de Marielle, contenham o ímpeto quase fetichista por novelas de escravidão e histórias de preto. Quer falar sobre escravidão? Nos dê o dinheiro que a gente conta de verdade como foi e como vocês, esses mesmos que querem falar sobre Marielle, são beneficiários da escravidão até hoje e não abrem mão disso. O racismo tem várias faces e a de vocês é apenas a mais bonita.
Parafraseando a cineasta Jéssica Queiroz, não tem nenhum Kubrick ou Scorcese no Brasil e mesmo assim, vocês brancos acham que podem fazer filme.
Qual foi a bilheteria do último Robocop, mesmo?