Por Jonas Pimentel
Via Esquerda Diário
Longe de negar sua realidade e condicionar sua produção artística ao sistema hegemônico da arte, Rosana Paulino discute com centralidade em seus trabalhos o racismo estrutural do Brasil, os resquícios da escravidão que ainda se fazem presentes, os padrões de beleza feminino e, sobretudo, a condição da mulher negra na sociedade. A artista também apresenta em suas obras as práticas religiosas da Umbanda, bem como outros elementos da cultura africana e afro-brasileira.
Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de são Paulo, a artista é uma das poucas mulheres negras a ter acesso à maior universidade do país. Segundo dados de pesquisa de 2013, “em todos os cursos de graduação [da USP], 78,7% dos estudantes que ingressaram este ano são brancos, 11,3% são pardos e 2,4% são pretos. O levantamento mostra ainda 7,5% dos calouros são amarelos e 0,2% indígenas.”
Apesar de inúmeras reivindicações do movimento negro e de setores da esquerda, apenas 2,4% de negros entram na USP. Mas existem sim muito mais negros e, principalmente mulheres negras nas universidades. Porém, elas entram pelas portas dos fundos para trabalhar nos piores empregos, possuem os piores salários, as piores condições de trabalho, são invisibilizadas pela estrutura racista da sociedade que vivemos, são maioria entre as trabalhadoras e trabalhadores terceirizados. Para saber mais acesse aqui.
Sem contar a quantidade de jovens negros assassinados diariamente pelas polícias brasileiras e os números absurdos da população carcerária onde a quantidade de presos esperando julgamento chega a 40%, enquanto os ricos são absolvidos ou cumprem penas domiciliares em suas mansões.
Pelo menos 50% da população brasileira é de negros e negras e a realidade do dia a dia nos prova que o racismo é estruturante e submete milhares de pessoas a uma vida de miséria e morte. Como disse Angela Davis, militante do movimento negro norte-americano, “o racismo, em primeiro lugar, é uma arma dos ricos para aumentar seus lucros pagando menos aos trabalhadores negros pelo seu trabalho”. Nesse sentido, é fundamental que a arte reflita também os processos sociais em que é produzida, pois uma arte livre não ignora as correntes que lhe prendem.
“Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados”
A trajetória pessoal de Rosana Paulino aparece por várias vezes em suas obras por meio de retratos de família, memórias do bairro Freguesia do Ó (SP), patuás, escapulários, estandartes religiosos, entre outras referências. Entrelaçar biografia e história parece ser o foco das obras que apresentam não apenas a vida privada da artista através de suas referências mas principalmente o plano social e político mais amplo.
Na série “bastidores”, Rosana discute a condição da mulher negra na sociedade brasileira a partir de imagens que expressam a supressão de direitos elementares.
Série Bastidores, imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura / 30cm / 1997
A combinação das questões de gênero e de etnia aparece de maneira explicita nesta série da artista e coloca em xeque o machismo/racismo estrutural que oprime milhões de mulheres no Brasil. A violência representada pela linha de costura no tecido sob a fotografia nos toca profundamente e faz com que o debate se polarize exigindo posicionamentos claros.
Sobre a série “bastidores”, Rosana Paulino argumenta: “no meu caso, tocaram-me sempre as questões referentes à minha condição de mulher e negra. Olhar no espelho e me localizar em um mundo que muitas vezes se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário. Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de comportamento que traz muito de preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão. Dentro desse pensar, faz parte do meu fazer artístico apropriar-me de objetos do cotidiano ou elementos pouco valorizados para produzir meus trabalhos. Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e, principalmente, para sua condição no mundo.”
Ao falar do silenciamento e da negação de uma vida plena às mulheres, sobretudo às mulheres negras que sentem cotidianamente o machismo/racismo estruturais, a artista dá voz à luta pela sua emancipação. Transforma em arte o grito de revolta contra esse sistema que produz tanta miséria.
É urgente combater as opressões e exploração brutais do capitalismo. Se furtar desses debates no trabalho, na educação, na arte, é fazer coro com a exploração do ser humano pelo ser humano e negar direitos fundamentais para a existência. Acesse aqui para conhecer outros trabalhos de Rosana Paulino.