Catou letras, reciclou histórias. Lá no interior, era mais feliz. Tinha paz mental. Gozava a vida, não era enferma. Aqui em São Paulo, se tornou poetisa. É dura a doença das palavras. Quando querem ser escritas, tudo é papel. Papelão, embalagem do pão, a própria mão.
Bradou ao mundo seu despejo. Vivia num quarto. Era o quarto Canindé. Lá eram despejadas as pessoas pobres. Na sala de visitas, o centro da cidade, fica tudo que tem beleza. Mas no quarto… Ah, o quarto. É onde se esconde todo entulho e toda bagunça.
As primeiras lágrimas caíram em Minas Gerais. Foi onde nasceu. Numa comunidade rural em sacramento. Ora, no entanto, foi São Paulo quem mais a fez chorar. De tristeza, quando pensou em suicídio:
“24 DE JULHO Como é horrível levantar de manhã e não ter nada pra comer. Pensei até em me suicidar. Eu me suicidando é por fim a deficiência de alimentação do meu estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome. Os meninos ganharam uns pães duros, mas estavam ‘recheiados’ de pernas de baratas. Joguei fora e tomamos café. Botei o feijão pra cozinhar.”
Era segunda metade da década de 50. A mãe de José Carlos, João e Vera Eunice tinha seus quase cinquenta anos. Para dar de comer aos filhos, era catadora. De vento, de realidade, de sonhos. Mas também de papel, lata, plástico. Também de cadernos. Eram a superfície que abrigava tanta história.
Buscava restos de carne também. Precisava comer. Quem deixou de se alimentar para fazer um exame em jejum, não conhece essa fome. Muito menos quem iniciou uma dieta. Por um tempo, os ossos mantiveram viva a família. “19 DE SETEMBRO […] no frigorífico eles não põem mais lixo nas ruas por causa das mulheres que catavam carne podre pra comer”. Ora, é claro que uma hora a bondade ia se acabar. Carne a quem paga a carne”.
Também cantava a vida. “Rico vai na frente, pobre vai atrás”. Mas foram as palavras, em 1958, que a apresentaram ao mundo. Um repórter visitava o despejo Canindé. Ouviu dizer dos cadernos da mulher. Dois anos depois, a obra estava publicada. Tinha três anos aquela arte. Desde 1955, escreveu. Algum papel pode ter se perdido. Mas o achado era suficiente.
Até então, sua vida era preta. Preta a sua pele. Preto o lugar onde morava. Após ser descoberta, permaneceu preta. E que bom! Nascida cerca de vinte e cinco anos após a abolição da escravatura, era dona da carne mais barata do mercado. No quarto de despejos, muitos negros dividiam espaço.
Viveu e reviveu tantas vezes a fome. Deu à sensação uma cor. A fome é amarela. Qual será a cor de ter seu livro lido por todo o mundo? Tinha o tom da sua pele: preto. Tinha o timbre da sua voz: forte. Tinha a feição do seu olhar: tênue. A mulher do quarto de despejo se tornou conhecida. Jantou nas mesas mais caras. Se hospedou nos hotéis mais bonitos. Viajou para os lugares mais desejados. Não quis ser do despejo. Sua palavra a tirou da favela do Canindé. Não tinha lugar ainda para ficar. Foi morar nos fundos de uma casa em Osasco. Não suportou, foi embora. Apedrejada pelas personagens reais de seus enredos. Depois, sim, encontrou um lar. Estava quase na sala de visitas. Mas não enriqueceu.
Aliás, sim, enriqueceu. Enobreceu todo olho que passou sobre suas palavras. Subverteu o quarto em que vivia. Por fim, talvez tenha deixado o leito às três da manhã, ao lembrar que saíra do despejo, mas os outros protagonistas de sua história, não. Pensou residir num castelo cor de ouro, que reluzia na luz do sol. Quando colocou os braços sobre as janelas de prata e as luzes de brilhantes, enxergou o céu. Contemplou as flores. Dessa vez, não era fantasia. Era o fim. Carolina Maria de Jesus deixou o despejo e deixou também a sala de visita. Partiu, para sempre, da madrugada do dia 13 para o dia 14 de fevereiro de 1977.