(Esta matéria contem spoiler)
Quando preenchi o questionário para assistir à pré-estreia do filme Eu não sou seu negro (trailer aqui) – um dos concorrentes ao Oscar de melhor documentário – havia um campo sobre qual movimento social eu militava. Parei para pensar. Fui aluna Educafro, parte de um coletivo negro na universidade, professora da Uneafro e escrevo e apresento para um portal de notícias chamado Todos Negros do Mundo. Ainda assim, tive dificuldades em enquadrar minha “militância”. Mal sabia eu que esse filme me apresentaria caminhos para pensar atitudes para além de enquadramentos classificatórios.
Ao chegar na Av. Paulista 900, já procurava por cabelos e peles que me indicassem o local exato da exibição. Depois, um homem disse ter achado o lugar me seguindo: “Essa preta deve estar indo pra lá”, disse ele revelando seu pensamento. A fila não era tão grande, não por causa do filme, mas sexta-feira às 10 horas da manhã militantes estamos vendendo nossa força de trabalho e nem sempre temos autonomia quanto a horários. Ainda assim, o espaço estava ocupado e representado.
Alguns rostos conhecidos e uma expectativa geral. O que veríamos ali era a história dos Estados Unidos da América, uma história real e ocultada. Três amigos: Medgar Evers, Malcom X e Martin Luther King. E uma testemunha: James Baldwin, o autor do manuscrito “Remember this house”, que baseou o filme.
Para além de se fixar as mazelas produzidas pelo sistema segregacionista, o filme apresenta as teorias de Baldwin sobre as relações raciais nos EUA através dos olhos de Raoul Peck, o diretor. A refinada análise sobre a influência do cinema na visão perpetuada sobre os “brancos heróis” e os “negros submissos” é o que costura os fatos históricos apresentados. A narrativa não separa os fenômenos, das ideias criadas sobre esses fenômenos e poderia ser discutida num curso de História, Ciências Sociais, Filosofia, Cinema, ou numa sede de movimento social, numa escola de Ensino Médio ou Fundamental 2, ou simplesmente por aqueles que se incomodam com a violência produzida por esse sistema opressor. Credito as diversas possibilidades na análise do discurso desse documentário ao cuidado em não tratar o tema de maneira superficial.
As diversas camadas apresentadas passam por vidas sacrificadas por uma luta, Lorraine – a jornalista assassinada e esquecida, um presidente indiferente, brados e choros anônimos, entrevistas em emissoras de televisão, atores brancos e negros que interpretam o status quo, um filósofo que não sabe o que lutar para sobreviver e disputas. A sutileza do filme está em mostrar que as principais disputas não são fotografadas, são as disputas de ideias. “Branco é uma metáfora do poder”.
Para Baldwin, o assassinato dos três líderes negros e a indiferença da maioria dos brancos com a questão das relações entre brancos e negros é sintoma de uma necessidade de apagamento da história. Eles precisam disso para não se sentirem culpados pelo crime que seus antepassados cometeram. A raiva que eles vêem em nós é fruto dessa culpa por algo que não querem reconhecer. Nós, só estamos tentado sobreviver enquanto o sistema ainda tenta matar a todos. Enquanto isso, o cinema cria ficções para amenizar e dizer que não foi e que não é tão ruim assim.
Homens que querem aliviar a culpa que sentem por oprimir dizendo que mulheres são dramáticas, brancos que tentam aliviar a culpa que sentem dizendo que negros são amargos ou revoltados, tudo isso diz respeito às estruturas de dominação. Enquanto não pensarmos com mais seriedade sobre elas, ou enquanto a maioria continuar indiferente às mortes que continuam ocorrendo, estaremos longe de acabar com essa guerra silenciosa.
Utilizo a primeira pessoa do plural porque considero muitos aspectos semelhantes com a realidade brasileira, principalmente a desigualdade, a violência policial traduzida em números de genocídio e a indiferença de todos aqueles que não querem discutir a questão.
Quantas salas de cinema passarão o filme no Brasil? Muito poucas! Por quê? Talvez pensem que ao contarmos essa história, estaremos contra os brancos. Mas estão enganados. Estamos contra uma estrutura opressora, a não ser que seja a favor dessa estrutura, pode ir ao cinema tranquilamente. Minha vontade é que muitos, muitos brancos tenham coragem de assistir para desconstruírem essa ideia de negro que eles mesmos inventaram. É, eu não sou sua negra!
Serviço:
Estreia no Brasil: 16 de Fevereiro
Ficha Técnica:
Título original: I Am Not Your Negro; Direção: Raoul Peck; Roteiro: Raoul Peck, James Baldwin; Produção: Rémi Grellety, Raoul Peck, Hébert Peck; Fotografia: Henry Adebonojo, Bill Ross, Turner Ross; Edição: Alexandra Strauss; Música: Alexei Aigui
Elenco: Samuel L. Jackson
Gênero: Documentário / País: EUA, França Bélgica, Suíça. Ano: 2016 COR/PB. Duração: 93 minutos Classificação: a verificar