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terça-feira, 03 outubro 2023
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Por que precisamos falar sobre o feminismo? Por Siméia Mello

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Por que precisamos falar sobre o feminismo?

Por Siméia Mello

 

Falar sobre feminismo é falar sobre lutas contra opressão e talvez, por conta disso, assim como o racismo, seja tão difícil. Difícil porque estamos sempre tocando naquilo que chamamos de privilégio. Afinal, dentro de uma sociedade desigual em que as relações são baseadas em poder e hierarquias, opressão e privilégio são faces da mesma moeda, já que um se alimenta do outro…

Se vamos pensar em feminismo, quem ganha com a opressão das mulheres?

Sim! Vocês acertaram: os homens!!! A eles está posto o comando do mundo, o protagonismo, a ação e, logo, a adoração. A nós, bom, a nós, cabe a ajuda discreta e de preferência silenciosa…

Mal colocamos a cara no mundo e já recebemos uma enxurrada de regras do que é ser menina, algumas ditas em alto e bom som, outras quase na surdina, mascaradas por um contrato social preestabelecido. Eis, então, nossos papéis postos. A nós, é relegado desde sempre o privado, o lar, começando pelas brincadeiras: brincamos de casinhas, com panelinhas, bonecas e sonhamos em ser princesas que serão salvas por lindos príncipes encantados. Ou seja, nossa vida é quase uma espera…

Porque não somos pensadas enquanto indivíduos únicos, mas como parte de um outro, o troféu do vencedor. É quase como que se sozinhas não fossemos possíveis existir, porque precisamos dessa figura que nos complete, ou melhor, nos complemente.

Mulheres são tolhidas diariamente, quando não mortas, por não serem donas de suas vontades, de suas vidas ou de seus corpos e isso tudo tem a ver como a opressão que o machismo exerce sobre nós, pela forma como essa sociedade vai imprimindo em nossos corpos modos de agir sobre e pelo mundo.

O quem me leva a questão da culpa!

Ultimamente, tenho pensado muito nela, sim, na culpa, na nossa culpa: a feminina!

E daí você me pergunta sobre o que eu estou falando… pois bem, sabe aquele sentimento que aparece sempre que um homem nos trata mal, nos ignora, trata as nossas questões como banais e superficiais? Aquela sensação de que não somos boas o bastante, maduras, inteligentes ou bonitas o suficiente! Logo, merecemos ser tratadas dessa forma! Sim, sim!! Entendemos errado, somos loucas, fúteis, não conseguimos perceber as necessidades deles ou a falta de necessidades, não conseguimos ler as entrelinhas, o que estava implícito no contrato e, portanto, merecemos a punição; que lambamos nossas feridas às escuras e escondidas pra não incomodar ninguém, que nos calemos e engulamos o choro, porque ele só é a prova cabal da nossa fragilidade e destemperança.

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Daí, num papo com as amigas, sempre surge algum caso: um cara que deu toda a pinta de que estava a fim e depois sumiu, ou apareceu com outra e, com certeza, a culpa é sua porque você não viu que ele não estava a fim; ou quando você está envolvida com alguém, mas não pode discutir a relação, porque ele tem coisas mais importantes pra decidir, o mundo depende dele e você lá com suas mesquinharias de amor… Ou quando você simplesmente aceita que ele te trate daquele jeito, porque as necessidades dele são sempre mais importantes do que as suas; ele quer isso, você aquilo, e adivinha quem abre mão?; você revida uma agressão sofrida, e pronto, se torna a mulher forte, que traduzindo quer dizer grossa, e todo mundo tenta te explicar que não é bem assim, que você não pode ser assim e de repente, eis ela, aquela nossa companheira de sempre: a culpa; etc.; etc…

Bom, pensando nesses casos, inúmeros casos que sempre aparecem no papinho feminino, acompanhado da cervejinha, ou seja, nessa culpazinha que nos persegue, fui conferir no dicionário o que a palavra trazia. E eis que, no famoso Aulete, encontro, dentre algumas descrições, a seguinte: é sentimento insistente e doloroso que alguém experimenta por ter agido mal ou faltado com um dever; transgressão de princípio ou mandamento, especialmente nos contextos teológicos do judaísmo e cristianismo; PECADO. O que me remete à Eva e a sua responsabilidade pela falha de Adão, pelo pecado original. Eureca!!

Ora, pensemos: há quanto tempo não carregamos isso? Se vivemos em uma sociedade cristã, ou seja, permeada de “valores” cristãos, logo, pensar Eva é pensar em nós. É pensar que, juntamente com ela, Eva, estamos nós, as mulheres. A culpa dela é a nossa! Somos também as culpadas pela expulsão do homem do paraíso! É nossa a culpa!!!

Uau! Então, de repente, aquela culpa que sentimos por aceitarmos, por não aceitarmos, por vivermos pequenas violências diárias não nos parece algo tão isolado, apenas uma experiência pessoal, somente nosso modo estranho de ver e viver a vida, mas sim algo muito maior, muito bem estruturado, alimentado diariamente pelo machismo, e aceito como uma verdade social. Interiorizamos quase como uma regra, como algo genuíno e agimos em conformidade com ela porque aceitamos como legítima, é porque é e ponto final…

Ora não somos espertas o bastante para discernir o que eles dizem ou fazem, ora somos culpadas por suas ações inconsequentes e irresponsáveis. E, nós, a vítima, nos sentimos culpadas, responsável por nosso sofrimento, pela violência sofrida, que nem sempre precisa ser física, palpável, concreta. Às vezes ela pode ser bem sutil, mais simbólica, na forma como estamos sempre erradas, no modo como nossas vontades são sempre ignoradas, nossas falas sempre silenciadas com um: não é bem assim…

E a gente segue achando que não devia ter dito, que não devia ter acreditado, que entendemos errado de novo, que somos muito sentimentais, que nosso choro não tem motivo, nosso “chilique” totalmente desnecessário, que somos tão desequilibradas, completamente loucas por vivermos em um mundo paralelo onde nossas vontades talvez fizessem algum sentido.

Mas o que precisamos entender é que esse julgo sobre os nossos ombros, carregado e alimentado por anos de opressão, não é nosso, não nos pertence… É só uma construção da sociedade que não pode ser internalizada e aceita como verdade absoluta. Muito pelo contrário, precisa ser questionada diariamente, constantemente como uma lição de casa de professora chata, dita, gritada, expurgada dos nossos corpos e mentes…

E daí volto para o início de tudo: por que precisamos falar sobre o feminismo?

Porque precisamos desconstruir, limpar os registros coletivos, nos livrar da culpa, da necessidade da perfeição feminina…

Portanto, falemos…

Sempre que possível, falemos sobre o feminismo!!!

E que ele nos liberte da culpa! Amém!!!

 

 

Foto PerfilSiméia Mello é negra e feminista. Mestra em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e revisora de texto. Está sempre discutindo educação, feminismo e racismo. É muito interessada nas lutas contra as opressões e sensível ao ser humano e as suas inúmeras questões.

 

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