Ontem o TNM publicou uma matéria sobre o desaparecimento da única atriz negra no comercial dos calçados da Piccadilly. Se não viu, veja AQUI. Hoje, recebemos uma nota de esclarecimento da empresa, sobre o ocorrido. Ao final da nota, colocamos nossas observações, leiam até o fim.
Nota de esclarecimento
A Piccadilly lamenta o fato levantado pelo portal Todos Negros do Mundo. Houve um problema técnico na condução do roteiro, mas em nenhum momento a empresa teve a intenção de desvalorizar a participação da modelo negra em questão. A Piccadilly informa que o feedback já foi analisado pela empresa e considerado como uma crítica construtiva, que certamente será levada em consideração nas próximas ações realizadas pela marca.
A Piccadilly é uma empresa de 60 anos, que sempre atuou com ética e respeito, tendo como prioridade e motivo do seu trabalho e sucesso todas as mulheres. Nunca houve qualquer tipo de discriminação por parte da empresa.
É importante informar que no último desfile em que a marca esteve presente, a estrela escolhida para representar a Piccadilly foi a bela atriz Cris Viana, que expôs e transpareceu na passarela o amor e carinho que a marca tem por todas as mulheres.
http://www.estilososnometro.com.br/2015/09/os-famosos-no-oscar-fashion-days-1-dia.html
Fiquem com nossa admiração e respeito.
Piccadilly Company
Nossas Considerações
Claro que o TNM, como veículo de comunicação que se propõe a vestir a camisa da causa negra e que surgiu justamente para denunciar a ausência do negro no audiovisual e na mídia de uma maneira geral, se sente satisfeito por receber uma nota de esclarecimento da empresa, o que mostra respeito por nosso posicionamento. Mas, continuamos sem entender o desaparecimento da atriz e não concordamos com muitas partes da nota. São elas:
- Lamentar o fato todo mundo lamenta (principalmente nós). Mas, geralmente apenas lamentam e não corrigem. Mesmo um sujeito que chama o outro de macaco na rua, assim que é pego ou confrontado acaba “lamentando” o ocorrido e continua sendo racista.
- Não conseguimos acreditar que houve “problema técnico na condução do roteiro” pelo simples fato de que, antes de ser filmado, qualquer roteiro passa pelo crivo do cliente. O roteiro só é elaborado e filmado respeitando as vontades do cliente (Piccadilly) e depois de diversos briefings.
- Quanto a condução do roteiro, sabemos que em todo set de um filme publicitário ou mesmo institucional, o cliente (empresa) sempre está presente, geralmente de olho no VA (video assist) atento para que tudo saia como combinado e conforme o roteiro aprovado. O cliente tem o poder de pedir alterações, já durante a gravação, se percebe que algo não está de acordo.
- Depois que o roteiro está aprovado o próximo passo é escolher e aprovar as modelos ou atrizes para estrelarem a campanha. Não conseguimos acreditar que a Piccadilly não tenha encontrado uma ou mais modelos e atrizes negras que pudessem dar a empresa a honra de usar um de seus calçados e emprestar a sua beleza, verdadeiramente brasileira, dançando ou interpretando. Aquilo que vocês mostram na campanha não é a realidade do Brasil, talvez da Dinamarca, Suiça, Suécia, Holanda ou Russia.
- Logo que a filmagem se finaliza, o próximo passo é a edição. Várias versões editadas são enviadas ao cliente para validação e correção de possíveis erros, e para que fique ao gosto do cliente. Somente depois da aprovação final é que o filme vai para o ar.
- A intenção de desvalorizar uma pessoa, um grupo de pessoas ou uma raça ninguém tem. Pelo ou menos ninguém diz que tem. O problema do racismo no Brasil é exatamente esse, o racismo é velado. Ninguém admite ser racista ou que tem, de fato, a intenção de não atender ou representar uma determinada etnia ou grupo.
- Acreditaremos que vocês tenham considerado que a crítica é construtiva, se vocês resolverem essa questão no seu próximo filme publicitário. No vídeo do dia das mães, que veio depois desse que constatamos o problema, ainda não foi resolvido. Consideraremos resolvido o problema quando vocês colocarem modelos e atrizes negras na proporção correta da população negra do Brasil, 52%. Uma modelo apenas não resolve, apenas demonstra que estão colocando por obrigação.
- Um empresa com 60 anos de existência já teve tempo suficiente para crescer como instituição mas ainda não conseguiu crescer em essência? 60 anos é tempo suficiente para perceber seu público e principalmente acompanhar as mudanças que aconteceram. Apesar de todos os problemas do país, ele evoluiu e as pessoas também evoluíram. Uma dessas mudanças é exatamente a melhoria de condição social e poder aquisitivo de boa parte da população negra e pobre de outrora. Outra mudança que aconteceu ao longo desses 60 anos é o aumento da consciência de auto valorização da mulher. Hoje, a mulher negra, gorda, trans, oriental quer se ver representada. Há tempos existe o pensamento de atrelar o consumo com a representatividade. Pelo visto, 60 anos serviram para que os modelos de calçados evoluíssem ou para que a empresa crescesse vendendo a imagem da mulher perfeita com base no que a empresa considera, apenas. Mulher branca eurocêntrica, “linda”, magérrima, e por isso “poderosa”. Sinto muito informá-los, mas todas as mulheres se sentem poderosas e não precisam de um calçado para isso. Hoje, mulheres negras se sentem poderosas com seus cabelos crespos enormes, raspados, preto, cor de rosa, azul ou na cor e estilo que ela quiser. Ela se sente poderosa estando acima do peso, abaixo do peso, gostando de homem, de mulher ou até de homem e mulher ao mesmo tempo.
- Quanto ao último desfile que vocês mencionaram, em que usaram a imagem da atriz Cris Vianna, bacana da parte de vocês. Mas, será que o fato de ela ser famosa não falou mais alto? Digo isso porque a negra desconhecida do comercial não apareceu por mais de 1 segundo. E outra, uma coisa é usar uma negra em um desfile para 400 pessoas na platéia e meia dúzia de fotógrafos. Outra coisa é usar uma negra em um comercial de TV para 200 milhões de pessoas espalhadas pelo Brasil, considerando que 97% dos lares brasileiros tem televisão. É fato conhecido no meio da publicidade que muitas empresas não querem atrelar seus produtos à imagem do negro para que suas marcas não pareçam “populares demais”. Será que esse não é o caso da Piccadilly? Afinal de contas, seria fácil compreender que uma empresa com o pensamento de 60 anos atrás ainda acredite que uma mulher negra não pode passar a mensagem de luxo, glamour e poder. Acreditem, vocês não estão sozinhos nesse universo de preconceitos, muitas empresas agem assim.
Enfim, não somos irresponsáveis ao ponto falar sem pesquisar ou ir atrás de informações. Consultamos o canal da Piccaddilly no YouTube e não encontramos uma unica pessoa negra em nenhum de seus vídeos. No Facebook da empresa também não há qualquer modelo negra. Caso exista uma campanha onde vocês usam modelos ou atrizes negras em vídeos que foram para a TV, por favor, nos enviem. Teremos prazer em publicar.
Esperamos que essa experiência realmente sirva de algo. Acreditaremos que vocês estão sendo sinceros em dizer que tem o maior carinho e respeito por todas mulheres, se em seu próximo comercial usarem o tema “diversidade”. Desafiamos a usarem modelos negras, ruivas, asiáticas, brancas, plus size, trans, altas e baixas. Prometemos um pedidos de desculpas formal e divulgaremos a campanha com o maior prazer do mundo. Enquanto isso não acontecer, permanecerá o apelo para que mulheres negras ou quaisquer outras que se sentirem ultrajadas, continuem a não comprar seus produtos. Afinal de contas, não há explicação para não terem uma única mulher negra entre 12 mulheres que vocês usaram nessa campanha. Não há explicação para uma empresa com 60 anos de mercado, não ter percebido nessas várias etapas citadas acima para a criação da campanha, que havia um problema.
Infelizmente, a realidade é que além de ter uma negação estética o mercado não considera o cidadão negro como consumidor, apesar de ser. A população negra que representa 52% da população brasileira, consome entre R$400 e R$500 bilhões por ano, segundo estimativas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mesmo tendo um poder aquisitivo menor em um universo de consumo de R$3,3 trilhões do PIB.
Vamos dar um exemplo de case de sucesso, uma empresa atenta e evoluída.
Em 2015, a rede de hipermercados Carrefour fez uma pesquisa com seus 72 mil funcionários e público-alvo, e se surpreendeu com o resultado. A metade de seus clientes era de negros descendentes. Além disso, a rede de hipermercados de origem francesa percebeu um problema, não havia equivalência dentro da própria empresa, entre os funcionários. Ou seja, eles não tinham 52% de funcionários negros como o Brasil tem na população.
Com essa constatação, a rede de hipermercados resolveu diversificar em suas campanhas publicitárias, impressas ou em TV, além de adotar uma postura diferente na hora da contratação dos funcionários. Considerando que seu público-alvo (todos que consomem) gostaria de se ver representado, eles começaram a usar mais pessoas negras em suas campanhas publicitárias e ter mais negros também como funcionários.
Se o dinheiro do negro tem o mesmo valor para a Piccadilly, aconselhamos que mudem a postura e comecem a agir de maneira diferente. Caso isso não aconteça, provavelmente uma queda de 52% no faturamento não será muito saudável para a empresa. Afinal de contas, os tempos mudaram e o negro de hoje tem mais informação e poder aquisitivo do que há 60 anos atrás. Se preocupem com a evolução, pois ela vai além de modelos confortáveis de calçados.
Para nós, representatividade importa. Se não me vejo, não compro!