A Mostra Sem Fronteiras, que tem como objetivo trazer visibilidade à carreira de Med Hondo e a outros filmes da África e da diáspora, vai até o dia 05 de dezembro. Além da importância do propósito do festival em si, outro ponto muito positivo é que a mostra trará 03 filmes que foram restaurados e serão transmitidos pela primeira vez no Brasil.
Os serviços de streaming tem garantido um pouco mais de visibilidade para cineastas negres e para que histórias diferentes das que estamos habituades a ver em Hollywood sejam contadas. Ainda assim, muitas dessas histórias já existem há anos e simplesmente não são conhecidas.
Medo Além da Tela e o cinema com sotaque
Mostra Sem Fronteiras e Med Hondo
Ainda que seja um dos maiores nomes do cinema mundial, Hondo permanece relativamente desconhecido para o público brasileiro. Por este motivo, o Goethe Institut em parceria com o Institut Français traz para o Brasil a mostra híbrida Sem Fronteiras, o cinema de Med Hondo.
Nascido na Mauritânia em 1946, Med Hondo é um dos principais cineastas da história dos cinemas africanos. Hondo encontrou no teatro e depois no cinema, a forma de expressar, não só a crítica ao colonialismo europeu, mas aos racismos diversos presentes nos cotidianos dos imigrantes africanos e do Caribe. Detentor de uma presença ativa e militante, Hondo faz parte da primeira geração de realizadores africanos, cujos filmes transformaram os modos de perceber as culturas e tradições africanas e diaspóricas nas telas, dentro e fora do continente.
A proposta curatorial desenvolvida pela pesquisadora e curadora Janaína Oliveira em colaboração com Astrid Kusser, traz algumas das obras centrais do cineasta, explorando as múltiplas possibilidades de conexões. Montando um mosaico que transita em uma dupla ambiência, por um lado com filmes internacionais contemporâneos aos do cineasta da Mauritânia e por outro estimulando relações com obras recentes, a curadoria almeja destacar simultaneamente o panafricanismo e a atualidade da obra de Med Hondo.
Para tornar esse encontro com a obra de Med Hondo ainda mais proveitoso, a curadoria da mostra associou uma seleção de filmes da África e da diáspora que conversam com a filmografia do cineasta. Outros destaques da programação são sessões com curadorias compartilhadas com três cineclubes brasileiros, além da realização de debates com especialistas locais e internacionais e uma colaboração com o coletivo Confraria do Impossível.
A retrospectiva nasceu da vontade de prestar uma homenagem a esse grande cineasta, que faleceu em 2019, cuja obra brilhante que permaneceu desconhecida do grande público por muito tempo, marginalizada pelos circuitos tradicionais de produção e distribuição.
O festival teve apresentações presenciais no Rio de Janeiro e segue de maneira virtual até o dia 05 de dezembro.
Med Hondo
Um pensador sobre as opressões – racial e colonial – e um original contador de histórias. Esse foi o cineasta mauritano Med Hondo.
Nascido Abib Mohamed Medoun Hondo em 4 de maio de 1936, na Mauritânia, descendente de escravizados libertos, Med Hondo foi um diretor de cinema, produtor, roteirista, ator e dublador. Ele imigrou para a França, chegando a Marselha em 1958, onde começou uma vida de trabalhos informais, que lhe proporcionaram consciência política. Lá desenvolveu uma paixão pelas artes dramáticas e pelo cinema, em que passou a trabalhar nos anos 1960. Med Hondo foi um ferrenho ativista pela liberdade dos povos e militante anticolonialista, caraterística que permeou toda sua obra. Os filmes apresentados nessa retrospectiva são todos marcados pela mesma indignação: obras de protesto cujo grito ainda encontra eco nas notícias do mundo atual.
Depois de fazer dois curtas-metragens, Hondo começou a filmar Soleil Ô (Ó, Sol) (1969), um filme com um orçamento baixíssimo, que foi filmado nos fins de semana. Apesar dessas limitações técnicas, esse primeiro longa demonstra o domínio cinematográfico do diretor e uma forte reflexão sobre a desilusão de um imigrante africano chegando a solo francês. O encantamento dos primeiros momentos é substituído pelo amargor diante do racismo cotidiano e o medo crescente de uma “invasão negra”. Soleil Ô continua sendo o filme mais conhecido de Hondo. O filme será exibido na Mostra Sem Fronteiras, mas a proposta da curadoria é mesmo destacar filmes menos conhecidos do autor, como West Indies, um musical que relaciona o sistema migratória na França depois das Segunda Guerra Mundial com a história da escravização durante o colonialismo e Fátima que relaciona questões de gênero com a luta anti-colonial.
Na França, Hondo ficou mais conhecido por sua longa carreira de dublador, ofício que exerceu com talento e lhe permitiu também financiar, em parte, seus filmes. Ele é particularmente conhecido por ser a voz francesa regular de Eddie Murphy e uma voz recorrente de Morgan Freeman e outros atores afro-americanos, incluindo Richard Pryor, Laurence Fishburne em sua estreia ou Carl Weathers. Também é conhecido por ter feito as vozes de Rafiki na série de filmes O Rei Leão e do Burro na série de filmes Shrek.
Graças à dublagem, a voz calorosa, charmosa, risonha e, ao mesmo tempo, versátil de Med Hondo era conhecida do grande público, mas escondia a outra “voz” desse artista: a de um ativista que abordava, em seus filmes, temas como polarização e racismo, que servem como ótima inspiração para discussões com especialistas e o público sobre a situação atual no Brasil. São questões também urgentes na Alemanha, na França e na maioria dos países da Europa.
“Estou muito ansioso pela resposta aos filmes do Med Hondo e às obras dos artistas convidados, bem como às discussões produtivas e, às vezes, controversas”, empolga-se Robin Mallick, diretor do Goethe-Institut.
PROGRAMAÇÃO
29 de novembro (segunda-feira)
Soleil Ô, Med Hondo
Mauritânia, 1970, 98’
O filme ficará disponível no dia 29 de novembro, das 16h à meia-noite.
SESSÃO CINECLUBE MÁRIO GUSMÃO
Os filmes ficarão disponíveis das 16h de 29 de novembro (segunda-feira) às 16h de 1º de dezembro (quarta-feira).
19h – DEBATE
Mediação: Janaína Oliveira
30 de novembro (terça-feira)
Soleil Ô, Med Hondo
Mauritânia, 1970, 98’
O filme ficará disponível no dia 30 de novembro, das 16h à meia-noite.
30 de novembro (terça-feira)
Polisario, Un Peuple En Armes / Polisario, A People In Arms / Polisario, As Armas de um Povo, Med Hondo
França/ Mauritânia, 1978, 85’
O filme ficará disponível no dia 30 de novembro, das 16h às 22h.
Oggun: An Eternal Presence, Gloria Rolando
Cuba, 1991, 52’
Os filmes ficarão disponíveis das 19h de 30 de novembro (terça-feira) às 19h do dia 2 de dezembro (quinta-feira).
1º de dezembro (quarta-feira)
Soleil Ô, Med Hondo
Mauritânia, 1970, 98’
O filme ficará disponível no dia 1º de dezembro, das 16h às meia-noite.
Sarraounia
França/ Burkina Faso, 1986, 120’
O filme ficará disponível no dia 1º de dezembro, das 16h às 22h.
SESSÃO CINECLUBE BAMAKO
Thynia, Lia Leticia
Pernambuco, 2019, 15’
PE 460 – uma luta ancestral, Crioulas Vídeo
Ouvido chão – identidades quilombolas, Gabriel Muniz
Rio Grande do Sul, 2021, 21’
Os filmes ficarão disponíveis das 16h de 1º de dezembro (quarta-feira) às 16h do dia 3 de dezembro (sexta-feira).
19h – DEBATE
Mediação: Janaína Oliveira
2 de dezembro (quinta-feira)
Soleil Ô, Med Hondo
Mauritânia, 1970, 98’
O filme ficará disponível no dia 2 de dezembro, das 16h à meia-noite.
West Indies, les negres marrons de la liberté
Argélia/ Mauritânia/ França, 1979, 110’
O filme ficará disponível no dia 2 de dezembro, das 16h às 22h.
SESSÃO CINECLUBE ATLÂNTICO NEGRO
Rapsódia para um homem negro
Mediação: Janaína Oliveira
3 de dezembro (sexta-feira)
Now!, Santiago Álvarez
Cuba, 1965, 6’
Abolição, Zózimo Bulbul
Brasil, 1988, 150’
Os filmes ficarão disponíveis das 16h de 3 de dezembro (sexta-feira) às 16h do dia 5 de dezembro (domingo)
Los Del Baile, Nicolás Guillén Landrián
Cuba, 1965, 6’
C’était Il Y 4 Ans, Paulin Soumanou Vieyra
Senegal/ França, 1954, 9’
Afrique Sur Seine, Paulin Soumanou Vieyra, Mamadou Sarr
França, 1955, 21’
Os filmes ficarão disponíveis a partir das 17h de 3 de dezembro (sexta-feira) às 17h do dia 5 de dezembro (domingo)
Mes Voisins/ My Neighbours/ Meus vizinhos, Med Hondo
França, 1971, 35’
O filme ficará disponível no dia 3 de dezembro, das 17h às 23h.
19h – DEBATE
Convidados: Amaranta César, Lorran Dias, Marcelo Ribeiro
Mediação: Janaína Oliveira
4 de dezembro (sábado)
Soleil Ô, Med Hondo
Mauritânia, 1970, 98’
O filme ficará disponível no dia 4 de dezembro, das 16h à meia-noite.
West Indies, les negres marrons de la liberté
Argélia/ Mauritânia/ França, 1979, 110’
Mes Voisins/ My Neighbours/ Meus vizinhos, Med Hondo
França, 1971, 35’
Os filmes ficarão disponíveis das 18h de 4 de dezembro (sábado) à meia-noite do dia 5 de dezembro (domingo).
5 de dezembro (domingo)
Soleil Ô, Med Hondo
Mauritânia, 1970, 98’
O filme ficará disponível no dia 5 de dezembro, das 16h à meia-noite.
Sarraounia
França/ Burkina Faso, 1986, 120’
Polisario, Un Peuple En Armes/ Polisario, A People In Arms/ Polisario, As armas de um povo, Med Hondo
França/ Mauritânia, 1978, 85’
Os filmes ficarão disponíveis no dia 5 de dezembro (domingo), das 18h à meia-noite.
SINOPSES
LES BICOTS–NEGRES: VOS VOISINS
ARABS AND NIGGERS, YOUR NEIGHBOURS
SEUS VIZINHOS, OS REFUGIADOS
Na França, há milhares deles. Eles fazem o trabalho mais difícil e degradante; eles são mal pagos. Subpagos, digamos assim. Eles vivem, em sua maioria, no que estamos acostumados a chamar de favelas, guetos. Eles têm sido objeto de livros e estudos sociológicos que “investigam seu caso”. Na televisão, vários ministros ou Secretários de Estado, diferentes lideranças europeias expressaram sua preocupação com o destino dessas pessoas no próspero, dinâmico e liberal Ocidente Cristão.
A maioria de seus líderes políticos nacionais não se importam. Sua saída de seu país de origem é muitas vezes desejada e, de fato, incentivada e organizada. São muito menos bocas para alimentar e, além disso… Quem sabe, poderiam ameaçar a ordem das coisas: o Estado Soberano. Em resumo, aqui estão eles, esses trabalhadores, os escravos dos tempos modernos, que partiram para um paraíso muito sonhado, com esperança em seus corações e estômagos vazios.
Desde 1960, seus números continuam a crescer. Os traficantes de negros estão se multiplicando entre a África e a Europa como nos bons velhos tempos. Os encontramos transportados em caminhões de máquinas de costura (fronteira italiana) ou congelados até a morte (fronteira espanhola). Mas quem são eles realmente? E por que eles estão deixando seus países de origem em tão grande número?
Cada um de nós poderia fornecer milhares de razões, múltiplas explicações, infinitas justificativas. Achamos mais apropriado, por uma vez, pedir-lhes para falar. Este filme, classificado como um relatório fictício, tenta dar voz à opinião de Seus vizinhos, os refugiados.
Sinopse de Med Hondo, Paris, 31 de julho de 1974.
Fonte: Ciné-Archives
FATIMA, L’ALGÉRIENNE DE DAKAR
FATIMA, THE ALGERIAN WOMAN OF DAKAR
FATIMA, A ARGELINA DE DAKAR
“No verão de 1957, nas montanhas argelinas, o segundo tenente senegalês Souleyman Fall lidera a seção de comando de elite responsável pela limpeza da área, que supostamente é o lar dos ‘fellaghas’. Ao cair da noite, ele descobre uma menina muito jovem, Fátima, que tenta escapar da emboscada. Ele a estupra. Esta agressão dá à luz um filho de pele muito escura… Souleyman, exortado por seu pai, muçulmano praticante, mas monogâmico convicto, vai a busca de sua ‘irmã no Islã’, Fátima. Nasce uma história de amor improvável e pacífica entre a argelina e o senegalês.
Argélia, Senegal, monogamia, poligamia, negros, norte-africanos… Med Hondo não teoriza sobre o Islã: Fátima, a argelina de Dakar é uma ficção popular que se transforma em um drama humano, simplesmente. O trabalho é inovador e ousado: ele destaca a complexidade e a riqueza de duas grandes correntes culturais geradas no Norte e Oeste da África pelo casamento do Islã sunita com a história “africana negra” do Sul do Saara, um Saara comum onde as culturas se encontram, às vezes entram em choque… Como a heroína de uma tragédia antiga, Fátima é o pivô deste drama, em torno do qual todos os personagens gravitam, e encarna a ligação entre estas duas culturas africanas. Ela revela seu significado profundo, imediato e universal: coragem, dignidade, generosidade, respeito por si mesmo e pelos outros.”
Trecho do folheto promocional de Fatima, l’Algérienne de Dakar, 2004
Fonte: Ciné-Archives
MES VOISINS
MY NEIGHBOURS
MEUS VIZINHOS
Os trabalhadores africanos falam sobre a vida cotidiana e o racismo nos mercados de trabalho e de moradia em Paris. Meus vizinhos é um fragmento de um projeto documental maior (Bicots-Nègres: vos voisins) com o qual Med Hondo queria explorar as políticas de moradia dos trabalhadores imigrantes em Paris. O filme foi baseado na ideia de uma série de filmes que ele não conseguiu realizar, mas que revela as possibilidades de um cinema de rua semelhante ao Cinema Direto e ao Cine-panfletos. Nunca o estado pós-colonial do mundo foi resumido de forma tão sucinta como na animada sequência de fechamento.
Digital Restoration Arsenal – Institut für Film und Videokunst, Berlim.
POLISARIO, UN PEUPLE EN ARMES
POLISARIO, A PEOPLE IN ARMS
POLISARIO, AS ARMAS DE UM POVO
Este filme é um testemunho. As imagens e sons gravados ao longo da luta do povo saharaui testemunham seu desejo de viver livremente em seu próprio país, enquanto colocam o “problema saharaui” em seu verdadeiro contexto. Como uma ex-colônia espanhola com considerável riqueza, o Saara Ocidental, como muitos países africanos, deveria conquistar a independência de acordo com as resoluções das Nações Unidas. A cegueira colonial e a procrastinação política levaram a uma maior tomada de consciência por parte da população. Um movimento nacional, a Frente Polisario, foi criado em 10 de maio de 1973. Em 20 de maio, a luta armada foi lançada. A ambição dos vizinhos foi manifestada durante a morte de Franco na Espanha. Desde 1975, as coisas mudaram com a criação da República Democrática Saharaui e a existência de “zonas libertadas”. Os soldados marroquinos se instalam nas cidades. A Mauritânia sai da guerra e reconhece a Frente Polisario. Era importante testemunhar este evento. A causa do povo saharaui é justa. Os momentos passados com eles mostram sua determinação em viver em casa.
SARRAOUNIA
Sarraounia é baseado em um evento real. O filme conta a história da sangrenta expedição da coluna Voulet-Chanoine que devastou toda uma região do Níger em 1899. É uma das páginas mais sinistras da epopeia colonial francesa. Sarraounia, uma jovem rainha africana, resistiu ao corpo expedicionário francês.
A rainha Sarraounia existiu e sua história foi fielmente relatada por griôs nigerianos e historiadores da mais pura tradição africana. Abdoulaye Mamani inspirou-se nela para escrever seu romance, Med Hondo para fazer seu filme.
Grand prix Étalon de Yennenga no 10o Festival Pan-Africano de Ouagadougou (Fespaco), o “primeiro grande filme épico da África Negra” (Le Monde, 26 de novembro de 1986) foi lançado em 1986 na França e exibido por apenas três semanas, apesar de uma petição assinada por Sembène Ousmane, Souleymane Cissé e Bertrand Tavernier. O filme foi relançado em 1992.
Em 2021, o Harvard Film Archive em colaboração com o Ciné-Archives está restaurando o filme no laboratório Lumières Numériques em Lyon.
WEST INDIES, LES NÈGRES MARRONS DE LA LIBERTÉ
West Indies são as Antilhas, primeiro as espanholas, depois as inglesas, francesas e holandesas, antes que Haiti e Cuba, entre outros, ganharam sua independência. O filme pode ser apresentado como um musical político. Encenada em uma sucessão de quadros, com uma estética teatral vigorosa, e usando a linguagem crioula como elemento essencial, é a história do povo das Antilhas que é contada, desde o século XVII até os dias de hoje: a ação acontece em um navio negreiro e é contada através de canções e balés, evocando tanto o passado, quanto o presente, esse outro “comércio” que trouxe milhares de homens e mulheres que se tornaram imigrantes na Europa, a fim de escapar da miséria.
West Indies é uma sátira contra a colonização francesa nas Antilhas e na África, um tema caro a Med Hondo. Filmado nas fábricas de Citroën em desuso no Quai de Javel em Paris, um poderoso símbolo da exploração da mão-de-obra da classe trabalhadora durante várias gerações, o filme revela um dispositivo cênico óbvio. Uma distância é estabelecida, dando força ao propósito do filme, lembrando a teoria de Brecht, que é cara ao cineasta.
West Indies foi apresentado em muitos festivais, mas foi desclassificado em alguns eventos por conteúdo “subversivo”. O filme foi exibido na abertura do Festival de Veneza e no Festival de Montreal em 1979.