Revista Vogue usa modelo negra para homenagear Jorge Amado. Escritor que influenciou a hipersexualização de mulheres negras e a proliferação do turismo sexual no Brasil.
Confesso que já me cansei de falar sobre a nossa ausência, enquanto mulheres negras, nas novelas, comerciais, revistas, nas primeiras páginas de jornais. Mas este mês, ter visto várias das minhas amigas falando da capa da revista Vogue de julho me deixou mais animada quanto a acreditar numa possível mudança do paradigma que nos coloca num estereótipo de subalternidade. #sóquenão.
Blésnya Minher é a modelo angolana escolhida para estrelar a capa de uma das publicações mais conceituadas de moda do mundo. É a terceira vez em toda a história da revista Vogue, cuja primeira edição foi lançada em 1892, que uma mulher negra aparece na capa da edição brasileira com seus cabelos crespos à mostra. Em todas as outras poucas aparições estas mulheres tiveram seus fenótipos negros visivelmente descaracterizados para que seus traços as aproximassem da beleza europeia. Nariz fino, cabelos lisos ou levemente ondulados e pele, muitas vezes, clareada pelo efeito de luzes.
A edição de julho da revista traz um especial sobre a língua portuguesa falada em seis países no mundo. Uma herança da colonização portuguesa feita sobre o custo de milhares de vidas. O editorial de moda da Vogue escolheu homenagear o escritor baiano Jorge Amado e usou a modelo negra angolana para, entre volumes e babados, vestir o figurino ideal inspirada pelos romances do escritor.
Cenário lindíssimo em Salvador para fotografar o encontro perfeito entre a moda e a literatura não fosse pelo close errado que foi utilizar a modelo angolana para homenagear um dos maiores responsáveis pela objetificação e hipersexualização da mulher negra brasileira. Jorge Amado não é um escritor muito lido no Brasil. No país, a população o conhece por novelas, filmes e minisséries. Enquanto romancista, o escritor baiano é muito reconhecido internacionalmente e o sujeito negro sempre foi representado em sua obra de maneira estereotipada. No caso das mulheres, podemos falar que as personagens de Jorge Amado vendem uma imagem de mulher gostosa e fogosa sempre disponíveis para o sexo, um corpo negro pronto para ser consumido. Esta literatura produzida pelo escritor e exaltada pelo editorial da revista Vogue tem grande influência no desenvolvimento do turismo sexual que lota as praias do nordeste brasileiro de homens europeus em busca de sexo fácil e barato, incentivando a exploração sexual infantil.
Homenagear Jorge Amado não é um problema. Homenageiem quem quiserem. A grande questão está na utilização da mulher negra em contextos que tendem a alimentar fatores que perpassam o corpo feminino negro: violência, pobreza e estigma. A Vogue não é uma publicação que costuma valorizar a presença de modelos negras em suas páginas. Muito pelo contrário, são inúmeras as situações de invisibilidade destas mulheres nas edições da revista. A primeira negra a aparecer na capa de uma edição da revista foi a modelo Donyale Luna na edição inglesa. Donyale foi capa 74 anos depois da primeira edição ter sido publicada e apareceu com a mão cobrindo seu rosto.
No Brasil, uma pesquisa realizada por Ana Caroline Siqueira Martins e Julia Rosolino Pasqualinotto apontou que, de janeiro de 2009 a dezembro de 2016, das 96 capas publicadas pela revista durante o período, apenas 8 tinham modelos negras. Em seis delas as modelos dividiram a capa com outras personalidades e em sete delas, houve a descaracterização do fenótipo negro, cabelos alisados, narizes bem finos e pele levemente clareadas com a ajuda de luzes.
A moda é um fenômeno que atua influenciando comportamentos e reflete diretamente os acontecimentos históricos/sociais de uma sociedade. Se as mulheres negras são invisibilizadas na moda, é porque são assim tratadas neste lugar de objeto também quando fora das passarelas e dos editoriais. Seja como empregadas domésticas ou como mulatas exportação, num contexto de conquistas e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um momento emblemático de afirmação e superioridade do grupo vencedor, escreveu Sueli Carneiro. “Moda é o espelho da história” disse Luis XIV e nessa história existe um olhar colonizador sobre os corpos das mulheres negras, olhar que nos exotifica e que a todo momento tenta nos manter neste lugar de submissão.