Na capa da Vanity Fair deste mês, temos ninguém menos que Angela Davis. Nascida em 26 de janeiro de 1944, Davis é um ícone do movimento negro nos Estados Unidos e no mundo. Ativista, professora, filósofa e intelectual, também é autora de diversos livros, como “Mulheres, raça e classe”, “Mulheres, cultura e política” e “Estarão as prisões obsoletas?”
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Para entrevistá-la, outra grande referência atual para o movimento negro: Ava DuVernay. E não é à toa. A cineasta tem produzido conteúdos que há tempos violentam a população negra e que vão muito de encontro com os assuntos discutidos por Angela Davis, como seu documenttário “A 13ª Emenda”, que fala sobre o encarceramento em massa.
Em seu perfil no Instagram, DuVernay diz que conversar com Angela Davis é encontrar o inesperado. Confira a entrevista na íntegra e entenda porquê:
Ava DuVernay: Estava lendo uma entrevista em que você falava sobre algo que tem estado na minha cabeça ultimamente. É sobre este momento em que estamos que eu vou chamar de ajuste de contas racial. Você sente que poderíamos ter encontrado este momento de maneira tão robusta como foi neste verão sem a crise do COVID como base? Um poderia ter acontecido com tanta força sem o outro?
Angela Davis: Este momento é uma conjuntura entre a crise do COVID-19 e o aumento da consciência da natureza estrutural do racismo. Momentos como esse têm, sim, sua ascensão. São absolutamente imprevisíveis e não podemos basear nossa organização na ideia de que podemos nos guiar por tal momento. O que podemos fazer é nos aproveitar do momento. Quando George Floyd foi linchado e todos fomos testemunhas disto – todos nós assistimos enquanto este policial branco colocou seu joelho no pescoço de George Floyd por 8 minutos e 46 segundos – acho que muitas pessoas de diferentes raças e etnias, que não tinha entendido necessariamente a forma com a qual a história está presente em nossas vidas hoje, que tinham dito “Bem, eu nunca tive escravos, então o que a escravidão tem a ver comigo?” de repente começaram a entender. Que há um trabalho que deveria ter acontecido imediatamente após o fim da escravidão que poderia ter evitado que nós chegássemos neste momento. Mas não aconteceu. E aqui estamos. E agora temos que começar.
Os protestos ofereceram às pessoas uma oportunidade de se juntar a esta demanda coletiva de trazer mudança profunda, radical. Tirar o dinheiro da polícia, abolir o policiamento como o conhecemos. Estes são os mesmos argumentos que temos trazido há muito tempo sobre o sistema prisional e todo o sistema de justiça criminal. É como se todas essas décadas de trabalho de tantas pessoas, que não receberam nenhum crédito, se realizasse.
Ava DuVernay: Você entendeu os perigos do policiamento americano, a criminalização de pessoas negras, nativas e de cor, 50 anos atrás. Seu ativismo e seu conhecimento sempre incluíram classe, raça, gênero e sexualidade. Parece que somos todos uma massa crítica onde a maioria das pessoas finalmente está conseguindo ouvir e entender os conceitos sobre os quais você tem falado há décadas. Isso é satisfatório ou cansativo depois de todo este tempo?
Angela Davis: Não penso nisso como uma experiência que eu tenho passado como indivíduo. Penso nisso como uma experiência coletiva porque eu não teria feito aqueles argumentos ou me engajado naqueles tipos de ativismo se outras pessoas não estivessem fazendo o mesmo. Uma das coisas que alguns de nós dissemos repetidamente é que estamos fazendo este traalho. Não espere nenhum crédito por isso. Não é para sermos reconhecidos que fazemos este trabalho. Fazemos porque queremos mudar o mundo. Se não fizermos o trabalho de modo contínuo e apaixonado, mesmo que pareça que ninguém está ouvindo, se não ajudarmos a criar condições de possibilidades de mudança, então um momento como esse vai chegar e não poderemos fazer nada a respeito. Como disse Bob Seale, não conseguiremos “aproveitar o momento”. Este é um exemplo perfeito de nós sendo capazes de aproveitar o momento e transformá-lo em algo radical e transformativo.
Ava DuVernay: Eu amo isso. Sei que tem muita energia concentrada em como manter a atenção. Mas o que você está dizendo é que isso precisa acontecer de maneira isolada à qualquer força externa. Para que quando o momento certo chegue, haja uma preparação que já estava em progresso. Não pense tanto em sustentar o momento. Só esteja preparado para o momento quando ele chegar porque ele vai chegar.
Angela Davis: Exatamente. Também estou pensando em suas contribuições. Tantas pessoas viram seu trabalho, seus filmes: A 13ª Emenda e o filme sobre A Redenção dos Cinco.
Ava DuVernay: Olhos Que Condenam! Não acredito que você conhece. Estou animada!
Angela Davis: Ah, meu Deus. Não só eu vi, como encorajei outras pessoas a verem também. Vi aquela conversa tocante entre os atores e os personagens na vida real. E tudo aquilo ajuda a criar um chão fértil. Não acho que estaríamos onde estamos sem o seu trabalho e o trabalho de outros artistas. Na minha cabeça, a arte é que pode começar a fazer com que a gente sinta o que não conseguimos necessariamente entender ainda.
Ava DuVernay: Você me fez ganhar a vida dizendo isso. Agradecer não é o suficiente. Há uma grande discussão sobre os símbolos de escravidão, do colonialismo. Estátuas sendo derrubadas, pontes sendo renomeadas, prédios sendo renomeados. Parece ser uma apresentação ou você acha que há essência nessas ações?
Angela Davis: Não acho que haja uma resposta simples. É importante pontuar as manifestações materiais da história com a qual estamos lutando agora. E aquelas estátuas são nossos lembretes de que a história dos Estados Unidos da América é uma história de racismo. Então é natural que as pessoas queiram derrubar aqueles símbolos.
Se é verdade que nomes estão sendo mudados, estátuas estão sendo removidas, também deveria ser verdade que as instituições estão olhando para dentro e descobrindo como transformar a si mesmas radicalmente. Este é o verdadeiro trabalho. Às vezes presumimos que o trabalho mais importante é o trabalho dramático – as manifestações nas ruas. Eu gosto do termo que John Berger usou: Demonstrações são “um ensaio para a revolução”. Quando nos unimos à tantas pessoas, nos tornamos conscientes de nossa capacidade de fazer a mudança. Mas é raro que a demonstração em si traga a mudança. Temos que trabalhar de outras formas.
Ava DuVernay: Sempre amo conversar com você porque você joga nove referências na conversa. Você me dá uma lista de leitura depois de suas citações. John Berger. Anotando. Uma das coisas sobre as quais você falou e sobre a qual me apoio é diversidade e inclusão. Em muitas indústrias, em especial na indústria do entretenimento em que eu trabalho, são chavões. Mas eu as vejo na forma como você me ensinou durante nossa conversa para A 13ª Emenda. Estas são táticas de reforma, não táticas de mudança. O escritório de inclusão e diversidade do estúdio, da universidade, de qualquer que seja a organização, não é o conserto rápido.
Angela Davis: Absolutamente. Todas as instituições virtualmente se aproveitaram do termo “diversidade”. E eu sempre pergunto: “Bem, onde está a justiça aqui?” Você simplesmente vai pedir àqueles que foram marginalizados ou subjulgados que entrem nestas instituições e participem do mesmo processo que precisamente os levou à marginalização? Diversidade e inclusão sem mudança real, sem mudança radical, não conquistam nada.
“Justiça” é a palavra chave. Como começamos a mudar as instituições em si? Como mudamos esta sociedade? Não queremos ser participantes da exploração do capitalismo. Não queremos ser participantes da marginalização de imigrantes. Portanto, tem que haver uma forma de pensar na conexão entre todas essas questões e como podemos começar a imaginar um tipo de sociedade muito diferente. É isso que significa “tirar o dinheiro da polícia”. É isso que significa “abolir a polícia”.
Ava DuVernay: Como podemos aplicar isso ao sistema educacional?
Angela Davis: O capitalismo tem que ser uma parte da conversa: o capitalismo global. E é parte da conversa sobre educação porque nós testemunhamos um aumento na privatização e o aparecimento de um tipo de híbrido: as escolas “charter” (fretadas). A privatização é o motivo pelo qual os hospitais estavam tão despreparados [para o COVID-19], porque eles funcionam de acordo com o que dita o capital. Eles não querem ter leitos extras porque isso significa que não estão gerando lucro. E por que estão pedindo que as crianças voltem à escola? É por causa da economia. Estamos em uma depressão agora, então eles estão dispostos a sacrificar a vida de muitos para manter o capitalismo funcionando.
Sei que esta é uma questão macro, mas acho que não podemos entender verdadeiramente o que está acontecendo na família cujos pais são trabalhadores essenciais e precisam ir trabalhar e não tem cuidados para seus filhos. Não só deveria haver educação gratuita, mas deveria haver cuidado para os filhos gratuito e deveria haver cuidado com a saúde gratuito também. Todas essas questões estão vindo à cabeça. Isso é, como você disse, uma prestação de contas racial. Uma reexaminação do papel que o racismo teve na criação dos Estados Unidos da América. Mas acho que precisamos falar sobre capitalismo. O capitalismo sempre foi o capitalismo racial. Onde quer que vejamos capitalismo, vemos a influência e a exploração do racismo.
Não temos falado muito sobre aquele período de Ocupação. Acho que quando olhamos para como os movimentos sociais se desenvolvem, a Ocupação nos deu novo vocabulário. Começamos a falar sobre o 1% e os 99%. E acho que isso tem a ver com os protestos de hoje. Devemos ser muito explícitos com o fato de que o capitalismo global é em grande parte responsável pelo encarceramento em massa e o complexo industrial da prisão, assim como é responsável pelas migrações que estão acontecendo ao redor do mundo. Imigrantes são forçados a sair de suas terras natais porque o sistema do capitalismo global tornou impossível se viver vidas humanas. Por isso eles vêm aos Estados Unidos, por isso vêm à Europa, buscando vidas melhores.
Ava DuVernay: Como é o sentimento, para uma mulher que nasceu na segregação, viver esse momento? Que lições você recolheu sobre a luta?
Angela Davis: Essa é uma grande pergunta. Talvez eu possa responder que dizendo que nós temos que ter um tipo de otimismo. De um jeito ou de outro eu estive envolvida em movimentos desde o tempo em que era muito, muito jovem e consigo me lembrar de que minha mãe nunca deixou de enfatizar que por mais que as coisas fossem muito ruins no nosso mundo de segregação, a mudança era possível. Que o mundo mudaria. Aprendi a viver naquelas circunstâncias enquanto também habitava um mundo imaginário, reconhecendo que um dia as coisas seriam diferentes. Sou muito afortunada por minha mãe ter sido uma ativista que tinha experiência com movimentos contra o racismo, o movimento para defender, por exemplo, os “Nove de Scottsboro”.
Sempre reconheci meu próprio papel enquanto ativista como o de criar condições de possibilidade de mudança. E isso significa expandir e aprofundar a consciência pública da natureza do racismo, do heteropatriarcado, da poluição do planeta e suas relações com o capitalismo global. Este é o trabalho que eu sempre fiz e sempre soube que faria diferença. Não o meu trabalho enquanto indivíduo, mas meu trabalho com comunidades que passaram por dificuldades. Acredito que é assim que o mundo muda. Sempre muda como resultado da pressão que massas de pessoas, pessoas comuns, exercem no estado das coisas existentes. Me sinto muito afortunada de ainda estar viva para testemunhar isto.
E fico tão contente por alguém como John Lewis ter conseguido viver isso e ver isso antes de morrer porque muitas vezes nós não conseguimos realmente ver o fruto de nosso trabalho. Talvez eles se materializem, mas talvez seja 50 anos depois, talvez seja 100 anos depois. Mas sempe enfatizei que temos fazer o trabalho como se a mudança fosse possível e como se essa mudança fosse acontecer mais cedo do que mais tarde. Talvez não aconteça; talvez não consigamos testemunhar. Mas, se não trabalharmos, ninguém nunca vai testemunhar.