Por Siméia Mello
Há um tempo, assisti a uma entrevista de Ruth Souza, atriz brasileira referência no mundo da arte por conta do seu protagonismo – foi a primeira atriz negra a subir no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a primeira a protagonizar uma telenovela –, na qual ela contava sua experiência escolar ao ter contato com as ideias eugenistas e como isso a marcou, deixando-a bastante constrangida e afoita em provar o contrário, em ser a aluna nota 10.
Simplificando, a eugenia era uma ciência pautada no conceito de seleção natural que, lá no fundo – não tão no fundo assim –, servia para categorizar os homens por meio de raças, demonstrando, “cientificamente”, como algumas podiam ser superiores a outras e, com isso, ajudando a disseminar a tese do menor valor mental do negro.
O que me remeteu a minha experiência escolar em escola pública…
Bom, pra início de conversa, só me lembro de ver negro em livros de História e sobre a escravidão, por meio de imagens de “escravos em troncos”, “negras escravas servindo aos seus senhores” – isso mesmo, escravos, não pessoas escravizadas, porque a humanidade daquelas pessoas não estava presente, nem discutida –; o que me encheu de vergonha e constrangimento por ser negra. Afinal, a minha cor estava somente atrelada à ideia de escravidão, inferioridade, dor, violência, falta…
Além disso, não me lembro de discussões sobre a escravidão ou sobre o racismo que não ultrapassassem a ideia de “coitados”. E, apesar de nunca ter ouvido de nenhum professor, o conceito apregoado, naquelas imagens e naquele discurso vazio e sem contexto, era de que os brancos eram, sim, superiores aos negros. Afinal, toda a história era sobre eles e sobre como colonizaram e disseminaram a cultura europeia – entenda-se como a única realmente importante –, levando a civilidade para povos tão selvagens.
No ensino de língua, me ensinaram muitas regras e como não se devia falar “errado”, mas eu não me lembro de nenhuma discussão de como a língua se atrela à sociedade e serve como uma ferramenta para manutenção de poder e, portanto, pode servir e disseminar o preconceito, as opressões, enfim, o racismo…
E denegrir se tornou, para mim, um verbo notável que só precisava ser conjugado de modo “certo”.
Ainda me recordo dos conceitos de civilização, da história da Europa contada como a única história real e importante, enquanto, os indígenas e negros eram os Outros…
Os Outros quem, “meu Deus”, me perguntava na minha curiosidade exagerada!
Em Geografia, a África era uma massa homogênea de países que foram colonizados pelos europeus e só. Não se discutia como aquela brincadeira de peguem o que quiserem fora feita, nem como a “ciência” servira para aquilo.
O fim da escravidão lido como algo lindo e bacana e só. Ufa, agora somos todos livres… Todos para casa. Ninguém discutia como os negros, agora “livres”, não foram sequer inseridos na sociedade como cidadãos, nem como aquela estrutura colonialista, escravagista e racista persistiu em uma sociedade de “homens livres”, marcando ainda a ferro o negro ao lhe negar a sua humanidade, ao lhe negar formas de emancipação, como, por exemplo, trabalho e educação.
Em contrapartida, me lembro de uma professora que, no ensino médio, em uma brincadeira em sala de aula, se referiu a mim como “negrinha” – mas como até aquele momento as discussões sobre racismo nunca ultrapassaram o senso comum –, meu constrangimento foi num nível que não consigo dimensionar.
E as “brincadeiras racistas” feitas a outras crianças negras? Minha sensação era de: “Ufa! Essa passou perto. Podia ser comigo!”.
Sendo a escola, sobretudo para crianças pobres, o segundo contexto social no qual somos inseridos, desse modo, parte importante da nossa constituição enquanto sujeito social, além de ser nosso primeiro contato com a educação formal, foi lá que eu aprendi a rir junto com todos das piadas racistas, porque era a única arma que eu tinha, já que ela – a escola – não me apresentou nenhuma outra…
Aprendi também, com a escola, a ser invisível, a ser uma eterna devedora sei lá do que, a sensação de não pertencimento, de desajuste e, principalmente, da vergonha em ser negra.
Pois, nesse contexto, eis que a Escola Sem Partido aparece preocupada com “o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior”. Já que, segundo eles, “a pretexto de transmitir aos alunos uma ‘visão crítica’ da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”, ideia combatida por eles por meio de um projeto de lei contra o abuso da liberdade de ensinar.
E lendo o material do site e do projeto de lei, surge o meu espanto: descubro que eu, euzinha, estudei em uma escola sem partido!
Sim, em uma escola que me transmitiu conteúdos e que, salvo raríssimas exceções, não fez discussões críticas, não fez “doutrinação ideológica” e – para o meu espanto, nem tanto assim – descubro que essa escola só serviu pra eu acreditar que realmente ser negro não era uma boa coisa, que a história era dos vencedores e que, aos perdedores, o silêncio, a invisibilidade e a opressão.
O que me leva a crer que escola sem partido, sem ideologia, tem uma ideologia – a hegemônica –, a mesma apregoada há muito tempo como a única verdadeira, aquela que nos vendeu a ideia de uma única história, de uma única perspectiva! É aquela que vem nos distribuindo verdades absolutas com as quais convivemos por gerações e gerações e que não podem ser contestadas sem parecer “doutrinação”.
Portanto, Escola Sem Partido nada mais é do que a manutenção do status quo, porque a doutrinação, meus amigos, já foi realizada! Ela vem sendo realizada por séculos. Por anos categorizamos o ser humano por gênero, por raça e por classe social e a escola tem servido, sim, à manutenção dessas divisões, privilegiando homens a mulheres, brancos a negros e não brancos, ricos a pobres, sem falar na heteronormatividade…
Educação é conhecimento, conhecimento é reflexão… E reflexão tem de ser crítica, precisa ser pensada e refletida pra além de um único viés, de uma única história! É confrontação; é remover a terra toda; é por o dedo na ferida social; é discutir papéis, lugares e categorias; é mexer nas estruturas…
É mais do que conteúdos dissociados que só servem para gerar ainda mais preconceitos e manter essa estrutura racista e machista na qual vivemos…
E conhecimento é mais, muito mais do que isso, porque ele é poder, porque ele é transformador, porque ele desequilibra a balança da injustiça social, amplia horizontes e nos altera pra sempre! E isso é reflexão crítica!
Portanto…
Aos queridos integrantes da Escola Sem Partido, bem-vindos ao século XXI, meus amores!!
Siméia Mello é negra e feminista. Mestra em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e revisora de texto. Está sempre discutindo educação, feminismo e racismo. É muito interessada nas lutas contra as opressões e sensível ao ser humano e as suas inúmeras questões.