fbpx
19.5 C
São Paulo
terça-feira, 03 outubro 2023
HomeColunistasInserção do negro nos espaços de poder, uma luta nem um pouco...

Inserção do negro nos espaços de poder, uma luta nem um pouco fácil

Inserção do negro nos espaços de poder, uma luta nem um pouco fácil

 

Por Victor Martins

 

Ao longo do recente século XX, muitos pensadores brasileiros acreditaram que, ou por ingenuidade intelectual ou até mesmo por má fé, nosso país seria uma espécie de paraíso das três raças. Nunca é demais lembrar que quem lançou as bases para essa tese foi o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), autor de Casa Grande & Senzala, que a partir do conceito de “democracia racial” atenuava os impactos da escravidão no que se refere aos conflitos raciais.

Evidentemente, a classe dominante do país e grande parte dos acadêmicos brasileiros usaram e abusaram do “mito da democracia racial” para fazer a manutenção do chamado privilégio branco em detrimento da inserção do homem negro e da mulher negra em setores estratégicos em âmbito de governo e de Estado.

Falando de modo mais direto, isso restringiu a participação de negros no Judiciários, no Legislativo, no Executivo, nas universidades e em outros espaços de poderes. Ficou bastante evidente que competia ao Estado brasileiro empreender um acerto de contas com o seu passado.

Depois da Nigéria, o Brasil é o país que mais possui africanos e afrodescendentes, de acordo com a Pesquisa Nacional de Domicílios (PND), realizada pelo IBGE em 2010. Contudo, os espaços de poder não refletem essa pluralidade social. Daí não ser exagerado dizer que há, nos lugares privilegiados, uma elite mais vinculada aos povos europeus do que aos povos indígenas e africanos.

A relação entre renda e perfil étnico do país demonstra o quão frágil é a tese do sociólogo Gilberto Freyre, uma vez que, ainda hoje, em pleno século XXI, na sociedade brasileira, o negro possui os piores salários, no teatro e cinema desenvolvem papeis estereotipados, habitam regiões mais distantes do centro, nos confrontos com a polícia são os mais vitimados (dados da Anistia Internacional, 77% dos jovens mortos pela polícia em 2014 são negros).

Isto não é fruto da incapacidade intelectual do negro ou da sua propensão à vulnerabilidade, mas sim, diria o professor sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), devido ao fato de existir mecanismos sociais para a manutenção do branco nos espaços de poder e para a consequente exclusão do negro. A pedido da Unesco, Florestan e Roger Bastide, nas décadas de 1950 e 1960, desenvolveram um estudo aprofundado sobre o racismo no Brasil, acabando por desconstruir a tese falaciosa de Freyre. No dizer de Fernandes, o negro tem tentado se inserir em um mundo criado à imagem e semelhança do homem branco.

Quando do término da assinatura da Lei Áurea, que pôs fim à escravidão, em 1888, o homem negro e sua família não foram reinseridos na sociedade. Muito pelo contrário, foram alijados do poder, ao passo que os senhores de escravos, “aristocratas mendicantes” que eram, receberam “gordas” indenizações do Estado Republicano. Óbvio que, na verdade, era o ex-escravo o gerador principal da riqueza do senhor e, no passado, responsáveis pelos grandes ciclos econômicos da colônia: açúcar e mineração, e da república: plantations, todos realizados por mão-de-obra escrava. Vide o trecho do decreto de 1890:

Decisão s/n. de 14 de dezembro de 1890

Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda.

Ruy Barbosa, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional

Considerando que a República está obrigada a destruir êsses vestígios por honra da Pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira;

Resolve:

1º — Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria.

 

Talvez seja esse o primeiro exemplo de manutenção do privilégio branco, pois a intenção do documento não está explicitada. Não se trata de apagar os vestígios imorais da escravidão, mas sim de não fornecer ao negro documentação para solicitar junto ao Estado uma justa indenização. Ao homem negro, rua! Ao senhor escravocrata, money, argent, cash, la plata!

O escritor e jurista Ruy Barbosa, à época Ministro da Fazenda, autorizou essas queimas de arquivos, mas jamais deixou de acatar as solicitações de indenizações dos latifundiários. Com esse gesto de desmemória histórica, Barbosa prestou um desserviço aos descendentes de africanos, pois dificultaria, até mesmo, o conhecimento dos ancestrais dos negros na África. Evidentemente que para um Estado republicado (1889-1930) demasiadamente elitista, antidemocrático e antipopular o negro jamais deveria ter voz, direito à indenização ou ao conhecimento do seu passado.

Hodiernamente, o movimento negro responde com razão quando perguntado sobre o 13 de Maio: – “Abolização para quem?”. Daí ser compreensível que o Movimento Negro Unificado (MNU) associe sua luta à data 20 de Novembro, que é igualmente a data de morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Desde o começo da República tiveram poucos avanços no que se refere à inserção e à melhoria da situação do afrodescendente na sociedade brasileira. O reflexo disso é demonstrado no racismo, na xenofobia em relação ao novo fluxo de imigrantes de africanos e haitianos por parte da população brasileira.

Os dados assim o demonstram, em que nem mesmo artistas do “show business” e personalidades da mídia estão protegidos do racismo à brasileira: Aranha (goleiro do Santos F.C.; Taís Araújo e Lázaro Ramos, atores globais; Neymar, jogador de futebol), exemplos de vítimas de racismo. Talvez isso explique a dificuldade da aceitação das políticas de cota por parte da classe dominante brasileira, considerando que grande parte dessa elite não aceitaram nem mesmo a abolição.

Conscientizar a sociedade brasileira é o melhor passo para suplantar os problemas decorrentes do escravismo, pois ao demonstrar que o passado africano e indígena, são tão ricos e grandiosos quanto o passado europeu, o povo negro fortalecerá sua identidade cultural se orgulhando de ancestrais como Sundjata Keita, Aboubakari II, Rainha Nzinga, Menelik II, Sekou Touré e Thomas Sankara. Como diria um provérbio de Moçambique, “Antes andar descalço, do que tropeçar com os sapatos dos outros”. Provérbio perfeito que serve para nós brasileiros, que carecemos de descalçar nossos sapatos coloniais e escravocratas que até então tem nos levado a caminhar por caminhos tortos. Somos povos de ancestrais europeus, mas também de ancestrais africanos, árabes, judeus, asiáticos e indígenas. Talvez seja isso, existente em nós de forma tão peculiar, que exerça tanta admiração no estrangeiro pela nossa cultura.

 

 

12596426_1054272164619386_436127847_nVitor Martins é doutorando em História Social pela PUC-SP, Membro do Cecafro, Docente de Cinema Africano e Asiático (Belas Artes-SP). Desenvolveu trabalhos na Unesco e no Ministério da Defesa sobre o continente africano e resgate histórico, respectivamente.

Compartilhe

- Advertisment -
- Advertisment -

MAIS LIDAS

COMENTÁRIOS RECENTES