Muitos nunca saberão o que é estar nesse nosso lugar. Outros tantos jamais entenderão o que é ser o tom menos desejado. E poucos terão empatia para ouvir o que estamos falando.
Essa reflexão não tem como objetivo dividir os negros entre retintos e não retintos, isso para além do que já obviamente acontece. O meu único desejo é que possamos começar a discutir abertamente sobre uma pauta de extrema importância no movimento negro, sem academicismo.
Eu resisti durante muito tempo antes de tocar nesse assunto. Isso, por que cheguei até a acreditar que estávamos todos do mesmo lado quando o assunto era colorismo. Parece que não estamos.
Alguns negros de pele retinta já criaram ranço, outros chamam os não retintos de afro-beges, e tem até quem diga que negros de pele clara não sejam negros – vide a treta do casamento. Eu acredito que eles são negros sim e que tem muitas dores. Por hora, esse texto não deseja abordar a temática do “não lugar” que é conferido aos negros de pele clara em algumas situações. Esse texto fala sobre ser negro retinto, Ok?
Os não retintos estão na ponta por vários motivos, desde o empoderamento financeiro até pequenas e bobinhas vantagens na sociedade. Muitos negros de pele clara vêm de famílias que têm um pouco (um pouco) mais de condições financeiras ou quando não, têm o privilégio de ser lido como a cor mais desejada que vai encontrar -mesmo que com dificuldades -, um centímetro a menos de obstáculos em alguns espaços o que lhe garante maior possibilidade de mobilidade social.
O erro é quando eles não reconhecem esses privilégios.
No colorismo, os negros retintos sentem uma angústia tremenda. Eles sabem que mesmo depois de passar pelo processo do empoderamento, o colorismo sempre estará ali, para nos lembrar que enfrentaremos outro desafio: O problema de ser apagado e desautorizado o tempo todo. E se nenhum retinto lhe contou isso, fique sabendo, é assim que nos sentimos o tempo todo.
Infelizmente, eu acabei descobrindo que o meu tom de pele precisa inegavelmente ser exterminado, silenciado e invisibilizado, pelos brancos e as vezes dentro do próprio movimento negro no Brasil também. Em alguns espaços, a nossa voz é inutilizada e descartada. A negação do negro retinto é real.
No fundo, nós retintos sabemos que no final, o desejo de uma sociedade eugênica é o de exterminar conosco. Aos não retintos, lhes é garantido a passagem pra continuar clareando. Outros podem até escolher serem negros ou não. Mas são os indivíduos de pele escura a quem ela – a sociedade e a branquitude – deseja que deixem de existir e por isso não somos preferidos para sermos protagonistas de muita coisa.
Somos os “heróis que apreciamos, mas que infelizmente, não são nossos modelos estéticos de protagonismo em nenhum espaço.”
É como se alguns – não todos – usassem a nossa cor para legitimar uma pauta, mas na hora falar do problema, o mensageiro precisar ter um tom certo. E esse um tom de pele mais palatável, não é o nosso.
A minha mãe costuma contar que sempre ao mostrar as nossas fotos para as pessoas, ela que não é retinta, observa automáticamente a reação das pessoas quando descobrem que nós três não temos a mesma tonalidade de pele dela: “Oh, puxaram mais para a cor do pai” – alguns chegam a dizer com olhar, segundo ela de desapontamento. Minha mãe demorou para entender que aquilo que ela experimentava, mesmo que na terceira pessoa era o colorismo.
Eu vi colorismo nas críticas a Djamila Ribeiro. Quando ela teve aquela discussão na internet e virou meme dentro do movimento com a frase “joga meu nome…”, eu imaginei vários cenários com mais empatia e imaginei ela com aquele tom. E se ela fosse daquele tom mais claro que faz a maior diferença, não teria deixado ela virar aquela “neguinha metida” na mente de muita gente. A gente descarta o retinto com mais facilidade.
Entre fevereiro e março estive no Brasil e fui redescobrindo essa faceta do colorismo aos poucos, e só fui me dar conta quando percebi que as amigas de pele rentina continuam solteiras.
“Está namorando?”
“Não” – geralmente essa é a resposta.
Os amigos gays desse mesmo tom, que não tem corpão ou quase dois metros de altura e uma voz “poderosa” ainda dormem sozinhos depois da balada. Quando isso acontece, tem alguma coisa errada.
O retinto sabe que pode ser o fetiche, a bicha preta pra namorar no escuro. A luz do dia, desde o primeiro dia de aula na escola , ela é macaca e neguinha, ele é Tião Macalé ou a Vera Verão.
O retinto sabe que os barracos mais pobres das favelas mais miseráveis têm um tom de cor certa, assim como os trabalhadores sem carteira assinada também. No subúrbio meu irmão, o ônibus que leva as massas aos grandes centros, vai mudando de cor conforme o horário; Quanto mais cedo, mais preto ele é. Ele vai clareando com passar das horas. Fala que é mentira?
Eu descobri que gente como eu, foi transformada na sub-casta dos indesejáveis indiana dentro do movimento negro brasileiro, somos os dalits. No Brasil e no mundo as pessoas detestam o meu tom de pele quando o assunto é protagonismo.
Esse ano, ao ser entrevistado para o jornal Valor Econômico, na matéria que abordaria as questões sobre a escravidão e as nova faces da negritude no Brasil, um dos pontos que eu fiz questão de chamar atenção para que essa matéria saísse correta, era que tivessem mais protagonistas como eu. Afinal de contas, por onde andam os dos pretos retintos?
Um exemplo?
Hoje, o meu canal e minhas redes sociais têm menos da metade da audiência que possui qualquer digital influencer que não tenha o mesmo tom de pele que o meu. Basta falar de negritude que Buzzfeed, Quebrando Tabu, Catraca Livre… colocam eles ali o tempo todo.
A minha querida Ana Paula Xongani, recentemente foi protagonista de um vídeo sobre racismo com a filha no condomínio onde mora. Emocionada, contou sobre a filha ser excluída do grupo de amiguinhas do condomínio onde mora. O vídeo foi despretencioso, não tinha o objetivo de querer ganhar ibope e mas viralizou.
Logo ela que produz tanto conteúdo de qualidade! Por quê somente esses vídeos viralizam?
A resposta está também no tom de pele. Geralmente, nós temos que ser a pauta mais sofrida. Assim como eu, ela se recusa a dar entrevistas que tenham o tom de piedade e tristeza. Após o episódio, Ana não falou com a imprensa sobre isso.
Algumas pessoas acreditam que nossa tonalidade de pele só sirva para pautas que envolvam o sofrimento. Não adianta, você pode contestar, mas eu sei que muitos dos negros não retintos, já deram graças a deus, por ter nascido negro com uma sensação de alívio: “Ufa! Eu não sou retinto” — Isso bem lá no fundinho.
A terrível herança de Modesto Broncos na Maldição de Cam, permanece no imaginário de muitos, e eu apesar de continuar acreditando que somos todos negros em diversas tonalidades, sei que as Beyoncés serão sempre as mais belas e as Lupitas as mais exóticas. Detalhe, ninguém deseja ser a segunda.
Nós precisamos falar sobre isso. Quem são os mais visíveis e os mais invisíveis nas pautas da negritude.
Não é culpa do preto de pele clara, que ele “fique melhor” na frente da câmera, “fique melhor” em cima do palco ou venda mais revistas. Na verdade ele tem mais atributos que a branquitude pode aprovar e por isso é escolhido para ser nossa voz em muitos espaços em que se dispõem a colocar uma pauta negra.
Mas precisamos questionar: Até quando somente o negro de pele clara vai protagonizar todas as pautas da negritude sem refletir no impacto dessa representatividade? Vai ficar em silêncio assistindo tudo de camarote ou vai conversar sobre isso? Vai ajuda a puxar a gente também?
E assim, pessoas como eu, aos olhos de muitos pretos e brancos, irão sempre ocupar o lugar do negro raivoso, que apesar do conteúdo que buscamos incessantemente aprimorar, nunca vamos imprimir realidade na fala, pois o pacote que me embrulha é para pretos e brancos, um pacote ruim. – Essa última frase é do meu amigo Luther Fortunato, que sendo negro retinto como eu, sempre fala dessa não realidade que nosso tom de pele imprime ao falar, nas infindáveis conversas que temos pelo telefone.
Eu não posso escolher quando e onde serei negro. E se essa frase lhe embaraça, eu tenho um pedido para você: Que tal abrir pro diálogo, sentar e discutirmos o colorismo? Seria um avanço. Podemos ser mais honestos ou continuar fingindo que o tom pele não faz diferença nenhuma na hora do “vamo vê”!