Esse texto foi escrito por Ícaro Silva para a coluna Papo de Artista da página Teatro em Cena
Não, não pretendo falar de vinhos, ainda que Dionísio seja nosso “padroeiro”, tampouco de qualquer outra fonte de consumo alimentício. Pretendo falar sobre plantar e colher.
Nesse exato momento, aqui no Rio, existem algumas centenas de atores se preparando para entrar em cena, algumas outras centenas ensaiando, algumas dezenas filmando ou gravando e milhares sem perspectiva de ocupação artística. Mas eu não ouso chamar esse último grupo, do qual eu sazonalmente faço parte, de “desempregados”.
Perdão, companheiros, talvez eu pareça desequilibrado ou desinformado ao dizer isso, mas a verdade é que não existe desemprego quando se trata de “fazer arte”. É claro que às vezes não há contratos, não há borderôs e nem projetos próximos, mas isso não nos desconecta do nosso ofício, menos ainda da nossa produção interna. Ou eterna.
Esse vazio que às vezes nos parece o fundo do poço, a beira do abismo e o fim do trilho é, na realidade, nosso período de Entressafra.
Na definição agrícola, esse é o período entre uma safra e outra, quando a produção anterior é comemorada, ou não, e a próxima se torna uma esperança desconhecida. É esse o momento em que se planta. Conosco, artistas, não é muito diferente. Ainda que nossas safras não tenham duração ou produto definidos, estaremos sempre colhendo ou plantando nossos frutos.
É claro que não sou tolo a ponto de afirmar tudo isso sem conhecimento de causa, tudo o que escrevo aqui está fundamentado na minha experiência, que não é absoluta, mas é honesta.
Há 20 anos trabalho com arte, 18 deles atuando, uns 7 cantando e todos escrevendo (ainda que não publicando). Nos últimos 10, ou seja, desde que sou maior de idade, cresce em mim o senso de responsabilidade; sobre minhas contas, sobre meu “futuro”, sobre a estabilidade que desejo encontrar e sobre o que quero fazer artisticamente. Existe uma pressão nesse sentido, principalmente sobre os jovens, e quando somos artistas, é como se a pressão aumentasse. Sim, precisamos pagar contas, sim, desejamos estabilidade financeira e muitos de nós desejam status social, mas é um crime, e ingenuidade sem fim, deixar que essa pressão suprima a nossa criatividade.
Em uma das minhas grandes entressafras, logo depois de “Malhação”, tudo o que eu ouvia eram pessoas me incentivando a “capitalizar”. “Tem que fazer jabá (presenças remuneradas), cara!!”, “tem que fazer a novela das oito!”, “tem que aproveitar tua imagem pra fazer dinheiro!”. Muitos palpites sobre o que eu tinha que fazer e nenhum sobre o que eu precisava fazer. Felizmente, sou daqueles que tendem a ouvir a “voz do coração” e isso me levou diretamente onde eu precisava: uma faculdade de Teatro. Eu havia acabado de passar quatro anos fazendo o mesmo personagem, que por adorável e bem sucedido que fosse, não representava nem 10% da minha capacidade ou necessidade artística. Eu tinha que pagar minhas contas, tinha que correr atrás do meu futuro, tinha que vencer os preços abusivos do Rio de Janeiro, mas o que eu precisava era de autoconhecimento, reciclagem, aprofundamento. Eu precisava plantar. E foi o que fiz. Fazendo da minha criatividade terra e do meu coração semente, descobri os frutos mais belos que nosso ofício pode dar.
Esse foi um período escasso de dinheiro, mas o mais rico de todos em desenvolvimento artístico. E, quando pude colher novamente, tive uma safra tão positiva, tão nobre e tão inteira, que ficou nítido para mim o que é ser artista e o quão prazeroso é exercitar esse ofício a partir de si mesmo, das próprias experiências e do mergulho interno. Em arte, tudo o que se colhe é fruto do que se planta nos períodos em que a seca é iminente. Tudo o que eu vier a colher em minha trajetória vai depender do que eu plantar em cada entressafra, em cada momento de dúvida, em cada dor provocada pela pressão social. A dor é, inclusive, material de trabalho e fonte de inspiração para todo artista, assim como o amor, assim como o humano, assim como o autoaprofundamento. Cada bom fruto vai depender de uma semente sincera, genuína, criativa e esse é o tipo de semente que nós, artistas, carregamos naturalmente.
Quem planta colhe, é simples assim.
Parabéns e obrigado por esse espaço, Teatro em Cena.
Boa colheita a todos!
Ícaro Silva é ator e diretor.