Depois de tantos minutos de silêncio, é hora de falar.
Parece que voltamos à época em que braços eram amputados, cabeças degoladas, corpos queimados a ferro em brasa. Tudo realizado à céu aberto, proporcionando espetáculos à população que aplaudia, berrava, gritava e condenava os carrascos segundo os crimes cometidos. É claro que muitas vezes se enganavam: o acusado não era criminoso, tinha sido forjado. Mas àquela altura, tanto fazia. Já estava na roda, na guilhotina, na forca, suplicando por piedade, o que o fazia pouco mais digno do que aqueles que permaneciam em silêncio.
A verdade é que não adiantava. Gritando ou não por misericórdia, eram mortos e a sociedade correta, pura e honesta saía satisfeita do espetáculo. Deviam dizer: “bandido bom é bandido morto”. E quando o acusado era inocente, deviam dizer também: “bandido bom é bandido morto”. Porque, é claro, aquele sistema não podia ser falho e o importante era a justiça ser feita.
Em certo momento, não queriam mais a forca: ver o carrasco agonizando não era lá o melhor programa para o fim de uma tarde. Pior ainda os braços e pernas arrancados quando cada um puxava um braço, uma perna, outro braço, outra perna, pra um lado diferente. Nem precisa explicar fisicamente o que acontecia. Tinha também o fogo: o local do espetáculo devia ficar quente demais com toda aquela fumaça saindo de um corpo queimado.
Melhoraram: inventaram o cárcere para bandidos e para não bandidos. Afinal, quantos inocentes não devem estar presos e quantos bandidos não estão à solta? A pele escura preenche os poucos metros da cela superlotada, mas a pele clara prefere mesmo preencher os hectares das grandes fazendas. Nessa prisão, não podiam ver os abusos: e o que os olhos não veem, o coração não sente. Exceto o coração dos carrascos, presos, abatidos, ensanguentados, deprimidos, maltratados.
O modelo permaneceu até o mundo moderno e contemporâneo, passando por mudanças, como em qualquer sociedade evolutiva. As mudanças, no entanto, não precisam significar evoluções. De repente, bateu uma saudade do espetáculo em que matavam os bandidos e não bandidos degolados, queimados, enforcados. Foi aí que instituíram a chacina como retorno ao suplício: o espetáculo assistido nas televisões gera os mesmos brados de “bandido bom é bandido morto”, bandidos ou não – não importa.
Aliás, se forem negros, importa menos ainda. Porque todo negro tem uma atitude suspeita na calada da noite e precisa ser enquadrado com violência porque representa perigo. Negro é sempre perigoso, sempre carrasco, sempre digno de enforcamento. Não importa se é o maior ícone do movimento negro e direitos humanos no mundo. Não importa se é vereadora que luta contra os abusos de poder. Não importa se são cinco meninos que dão aulas de hip hop para crianças de 8 a 10 anos na quebrada em que vivem. Negro é carrasco e, quando morre, vira um espetáculo só: era rude, grosseiro, envolvido com drogas, casada com traficante, defende bandido ou é bandido.
E, depois de tanto minuto de silêncio que fazemos para um de nós que é levado pelo retorno ao suplício, pensamos: quando é que vão parar de nos matar?
Preta. Pobre. Poeta. Periférica. Prounista. Filha de Oxum, tem paixão pela palavra e estuda o último ano de Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie.