De acordo com o IBGE, dos 13 milhões de brasileiros desempregados no terceiro trimestre deste anos, 8,3 milhões eram pretos ou pardos. Não é nada que a população negra brasileira ainda não saiba, mas em novembro os dados vem à tona para comprovar o que afirmamos dia após dia: o racismo ainda existe e não só bate à porta como também impede que a comida chegue na mesa. Os 63,7% dos desempregados apontados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), divulgada nessa sexta feira (17) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, são as vítimas do racismo institucional que segrega sutilmente a população cuja cor dá tom a mais da metade das peles nesse solo.
O mesmo solo que abriga, após a morte, o corpo que sobre ele trabalha desde a diáspora africana. Segundo o Atlas da Violência 2017, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. A carne mais barata do mercado possui chances 23,5% maiores de ser assassinada. As guerras instituídas nas periferias do Brasil ou mesmo nos cortiços dos Grandes Centros enterra solo abaixo os que eram sobreviventes. Aqueles que resistem, com punhos cerrados ou pulsos torcidos frente à luta diária e, de repente, nem mais sobrevivem. Alguns partem sem saber quem são: “cor de burro quando foge”, “café-com-leite”, “escurinho”, “mulato”, “da cor da noite”.
Mulheres negras representam 65,9% das vítimas de violência obstétrica, de acordo com o Disque 180, e 58,8% das vítimas em casos de violência domésticas, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). São elas ainda, de acordo com o Ministério da Saúde, as que mais morrem no parto: 53,9% dos casos. No campo do trabalho, onde a meritocracia dita o sucesso, as mulheres enfrentam desigualdade: segundo o IBGE, o rendimento médio delas é de R$ 800 ao mês enquanto homens brancos ganham R$ 1.559. Nada que uma mulher negra não saiba. Afinal, é ela que tem medo de se entregar a um relacionamento por medo da violência, é ela quem sofre desde o primeiro mês da gestação pensando em dar à luz e, sobretudo, é ela a mãe de muitos filhos não assumidos pelo pai que sustenta sozinha a casa com um mísero salário.
Em novembro, quando os dados trazem à tona o racismo estrutural, parte da população se espanta. No entanto, boa parte da metade do Brasil já conhece o que dizem os relatórios. Estatísticas reafirmam o que a vivência comprova a cada ônibus em que o assento do lado fica vazio e há gente em pé. Reafirmam também cada “que mulata é essa” que uma mulher negra ouve ao sair pelas ruas. Ou, ainda, aquele “esse cabelo é bom para puxar”. Quando, na verdade, esse cabelo é bom para se amar. Se reconhecer. Se compreender. Se exaltar. Se descobrir. Bom também para dormir… Não, não porque parece macio. Porque a consciência negra dorme tranquila quando se aceita. E, nesse sentido, tudo bem alisar também. Porque a consciência negra dorme tranquila quando se aceita. Crespa, lisa ou careca.
Só não consegue dormir quando o barulho dos tiros na quebrada é muito próximo de casa. Não consegue dormir quando o lamento da mãe negra que perde seu filho ecoa. Não dorme quando a menina negra faz um aborto clandestino. Tem insônia quando o enquadro violento tira a consciência negra. Porque para ter consciência negra é preciso estar vivo… Por dentro e por fora. Não basta ser acrobata da dor, ouvindo sinfonias do acaso e sentir as dilacerações. É para ser livre! “Livre! bem livre para andar mais puro, mais junto à Natureza e mais seguro do seu Amor, de todas as justiças”. A população negra, quando adentra os espaços elitistas, adoece. Permanecer é também um desafio. E sobre isso ainda não existem tantos dados, talvez em novembro do ano que vem.
Afinal, é em novembro que dados comprovam aquilo que a negritude já conhece. Esses dados parecem cumprir um papel: provar à ‘branquitude’ aquilo que negros e negras reafirmam diariamente porque sentem o golpe que vem pelas costas. Quem vive, sente o racismo atravessando camada por camada da pele do pescoço até atravessar a garganta. E tantas vezes fica parado lá, porque falar pode custar perder o pouco que se conquistou. E, por mais que tragam à tona como base, inclusive para a academia onde negros finalmente têm ingressado, as os dados apenas legitimam o discurso que levantamos toda vez que lembramos de quem perdemos, do que perdemos, de onde perdemos, do porque perdemos, de quando perdemos. E, mais ainda, do quanto pedimos para não ser vistos só em novembro.