Prática que surgiu entre os séculos XVII e XIX nos EUA, com o esdrúxulo objetivo de ridicularizar pessoas negras em shows populares frequentados por brancos, o blackface representa ainda uma expressão racista. A pintura preta num rosto branco é apresentada principalmente em programas de humor, cuja maior função é reforçar estereótipos como o da “nega maluca”, geralmente interpretada por homens brancos que defendem se valer de uma expressão cultural. A manifestação de mau gosto, no entanto, reforça a condição da chamada mulata, mulher hiper-sexualizada, da barraqueira e da espalhafatosa, como mulheres negras são lidas socialmente, à luz dos preconceitos raciais e sociais.
A utilização do blackface é, portanto, não apenas revoltante, sob a perspectiva histórica a que é submetida, mas triste: tingir de preto a pele branca que não representa mais da metade do Brasil e nem sequer vive metade do que vive a maior parte dos filhos dessa pátria mãe – nada gentil quando o símbolo é genocídio ou encarceramento da juventude preta -, representa desrespeito a quem o grito ecoou dia e noite no açoitar da pele. No entanto, mais triste ainda que essa prática defendida pela ‘branquitude’ em todo o mundo, é presenciá-la ser reproduzida por uma mulher negra que, em solo brasileiro, alcançou respeito do movimento negro por sua militância.
Alexandra Baldeh Loras é uma apresentadora e jornalista francesa, casada com o diplomata Damien Loras, que já foi cônsul da França em São Paulo. Mulher negra, Loras foi acolhida por representantes dos quase 54% dos brasileiros. Construiu, desde então, uma carreira sólida com base em palestras que buscavam discutir o preconceito racial no Brasil, com vistas às discriminações vividas pela ex-consulesa desde que aterrissou no país que se tornaria sua casa. Apesar de todo histórico exemplar no movimento negro, Alexandra divulga agora Pourquoi pas?, uma exposição que tinge de preto a pele de celebridades brancas. Em seu facebook, a ex-consuleza diz que busca propor, neste mundo invertido, com uma dose de humor e ironia, uma reflexão mais profunda sobre o protagonismo do negro na história. Talvez, tenha se esquecido que reflexão e crítica sobre lugar do negro não se faz com humor, se faz com consciência.
Em português, Por que não? apresenta personalidades como Donald Trump, Xuxa, William Waack, Michel Temer, Ana Maria Braga, Dilma Rousseff, Sílvio Santos e João Dória com pele negra e traços negroides para, segundo declaração de Loras em seu instagram, apresentar uma realidade invertida para provar como estamos longe de uma democracia racial. Realmente! Como estamos distantes. Fortalecimento à negritude se faz ao lembrar dos tantos nomes negros que mudaram a história, não fazendo uso de uma prática racista na tentativa de evidenciar a ausência da população negra nos espaços de poder.
Apoiada por Zeferino, INDEX e Buffet Rinzler, a exposição representa retrocesso à valorização do negro: pintar rostos brancos de preto é caricato e não fortalece a negritude. Pelo contrário, evidenciar figuras como Waack é potencializar o alcance de quem já produz discursos racistas, inclusive no papel do formador de opinião. É ainda legitimar a utilização do blackface, afinal se o ‘artivismo’ de uma mulher negra se vale dessa representação por que é que os foliões no carnaval não podem fazer o mesmo? Não vai demorar muito para que perguntas como essa surjam e as respostas fujam de nossas bocas, porque nelas cabe apenas um suspiro de indignação frente ao que Loras defende causar reflexão.
Pourquoi pas abordar os negros na beleza de seus traços negroides? Pourquoi pas tratar da mulher negra sob a perspectiva de sua própria aceitação? Pourquoi pas denunciar o encarceramento, a violência obstétrica, o genocídio, o desemprego, a violência doméstica, o ingresso na universidade? Pourquoi pas enaltecer a força de um povo que apesar de maioria é lido como minoria? Pourquoi pas refletir sobre a periferia como novo quilombo? Pourquoi pas lembrar que favela era uma flor branca que dava nos morros? Pourquoi pas punhos negros cerrados unidos contra o racismo? Pourquoi pas pensar criticamente as representações racistas em vez de reproduzi-las?