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terça-feira, 03 outubro 2023
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Santos: Entre a terra da liberdade e o apagamento histórico

Santos é conhecida pelas praias, o porto e turismo, mas aqui também foi, e ainda é, espaço de luta. A comunidade negra da cidade continua resistindo.

A comunidade negra faz parte da formação do Brasil. Mesmo com o apagamento histórico, a luta e resistência continuam. Um exemplo disso é a região da Baixada Santista. Foi entre a serra e o mar que muitos escravizados conseguiram achar um local para construir uma nova vida.

Somente a cidade de Santos abrigou dois grandes quilombos e um refúgio, sendo eles: Jabaquara, Pai Felipe e Santos Garrafão. Hoje em dia, o município conta com o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e de Promoção da Igualdade Racial, que busca a afirmação de políticas púbicas para a comunidade.

Ivo Miguel Evangelista dos Santos, coordenador do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e de Promoção da Igualdade Racial
Ivo Miguel Evangelista dos Santos, coordenador do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e de Promoção da Igualdade Racial | Foto: Autoral

“O nosso conselho da comunidade negra é o segundo mais antigo do estado de São Paulo. Tem mais de 34 anos de existência e temos conseguido avançar bastante. Esse ano, aprovamos a lei dos 20% por cento de cota para afrodescendentes nos concursos públicos,afirma o coordenador Ivo Miguel Evangelista dos Santos.  

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Formação da comunidade negra em Santos

Dos três quilombos da cidade, o do Jabaquara foi segundo maior do Brasil. De acordo com a coordenadora pedagógica da Secretaria de Educação de Santos, Adriana Negreiros, o município abrigou mais de 10 mil escravizados.  “Apontamos a existência de 13.416 escravizados em Santos entre 1772 e 1872, segundo o Recenseamento da Cidade de Santos.”

Quintino de Lacerda
Quintino de Lacerda | Foto: Acervo digital

No quilombo do Jabaquara, temos uma figura de grande importância, Quintino Lacerda, o primeiro vereador negro da cidade. Chefe do quilombo, só conseguiu tomar do cargo público após muita luta. Mesmo que a cidade tivesse uma mente mais aberta, os setores racistas que controlavam (e controlam ainda) a política não facilitaram a vida de Quintino. Por conseguir transitar entre brancos e pretos, ele se tornou uma figura controversa, mas que cumpriu o seu papel na luta.

Sua ascensão pode ter acontecido por conta do pensamento mais progressista da região. Afinal, Santos já tinha abolido a escravidão um ano antes que restante do Brasil. “A história dessa cidade em relação ao negro é significativa. Os escravos aqui em Santos já eram libertos há mais de um ano, foram alforriados nas coxias do Teatro Guarany,” relata Ivo.

No site Primeiros Negros, é possível encontrar a história completa de Quintino Lacerda.

Além do Jabaquara, os outros dois quilombos também deixaram seu legado. O do Pai Felipe, que ficava nas redondezas da Vila Mathias, era conhecido pelas batucadas, danças de maculelê e tudo que representava a comunidade negra. Seu líder era o Rei Batuqueiro, considerado o precursor do carnaval de rua na cidade, que teve sua primeira manifestação pública no dia 13 de maio de 1888 para festejar a Abolição da Escravatura.

Mapa do Vale dos Quilombos de Santos
Mapa do Vale dos Quilombos de Santos | Foto: Reprodução

Protetor dos escravizados, festeiro, amante da própria cultura, Pai Felipe pertencia a nação Nagô e deixou sua marca aqui no litoral. O refúgio do Santos Garrafão também teve a sua contribuição para a comunidade negra. Seu nome veio do apelido de José Theodoro Santos Pereira, marido da ex-escravizada Brandina. Juntos, eles abrigavam escravizados fugidos na pequena pensão na Rua Setentrional (ao lado do atual prédio da Alfândega), por isso, alguns historiadores não consideram de fato o local como um quilombo. Brandina acolhia seus iguais, mas em geral muitos lembram apenas de Santos Garrafão, mais uma vez apagando a história de uma mulher negra.

Para o coordenador do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e de Promoção da Igualdade Racial, toda essa bagagem só reforça a necessidade de preservar a cultura preta. “Santos tem uma importância histórica, é uma cidade que luta, continua buscando as políticas que são importantes para a nossa comunidade. Temos caminhado, mas sabemos que nada para negro é fácil nesse país. Nós lutamos, nós existimos e procuramos nos sobrepor da melhor maneira possível.”

Segundo a Secretaria de Educação, as redes de ensino procuram trazer mais visibilidade para as raízes da comunidade negra. O apagamento ainda é palpável e só pode ser combatido com educação. As crianças pretas merecem ter autoestima e saber quem foram seus antepassados e seus heróis.

Foto Antiga Quilombo em Santos SP
Foto Antiga Quilombo em Santos SP | Vivienda de negros, s.d./ Santos – Brasil. Cartão Postal. Fotografia P&B [Kohlmann – 2016 depositada]. Processo de colorização, 2019.

“Nas escolas, desde 2004, realizamos formações destinados aos professores, funcionários e comunidade em geral onde são oferecidas discussões sobre diferentes temáticas: História da África, História da Cultura Afro-brasileira, Novos Heróis, Literatura Africana, Bonecas negras, Legislação, Lápis cor da pele, Racismo, entre outros.

Diante das mudanças advindas com a Base Nacional Curricular Comum, nosso currículo local, que já abordava as questões raciais em determinados anos, passou a priorizar a temática em todos os anos da educação básica, ” relata Adriana.

Mesmo assim, a cidade de Santos continua perdendo no combate ao racismo, assim como o país todo. A terra da liberdade é também é um lugar de segregação racial. De acordo com o Censo Demográfico de 2000, a Região Metropolitana da Baixada Santista tem a maior proporção de negros do estado de São Paulo, formada por 34,8% de sua população.

Por isso, é necessário ser efetivo, lembrar da história e ter orgulho, caminhar para de fato criar uma sociedade igualitária.

LAB Negritudes

Falar da história da comunidade negra é mostrar além da escravidão. O sistema escravista foi imposto, deve ser lembrado para continuar a luta, porém não se deve resumir pessoas pretas a isso. A cultura, o samba, a fé, que se popularizou no Brasil, que fazem esse país ser tão original, veio do negro. Todos os cantos têm uma influência e uma resistência que não podem ser ignoradas.

Pensando nisso, nasceu a pesquisa Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras da Baixada Santista, do Instituto Procomum. O projeto está sendo desenvolvido pelo jornalista Marcos Augusto Ferreira, com o apoio da coordenadora de comunidades e experimentações, Luísa Xavier. Com o desenvolvimento da pesquisa, temos o LAB Negritudes, que reúne essas experiências da comunidade negra dentro de Santos.

A ideia surgiu a partir do questionamento de onde estavam os negros que ajudaram a transformar a cidade. “A principal pergunta é como que a gente passou da terra da liberdade e, na passagem do século 19 do século 20, temos a cidade mais segregada do país, isso de acordo com uma reportagem do Jornal Nexo, em 2015. Pensamos na memória em trânsito, uma memória que é viva para entender os caminhos entre o ancestral contemporâneo, afirma Luísa Xavier.

Marcos Augusto Ferreira e Luísa Xavier, contam sobre a pesquisa Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras da Baixada Santista, em Santos
Marcos Augusto Ferreira e Luísa Xavier, contam sobre a pesquisa Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras da Baixada Santista, em Santos | Foto: Autoral

Marcos se considera um bisbilhoteiro nato e isso o ajudou a mergulhar no projeto. “Ando muito pelas ruas e vejo os nomes de ruas. Aqui você tem Quintino Lacerda, Luiz Gama e Maria Patrícia, por exemplo, mas a história em si fica perdida. Pensei em remover os escombros porque uma cidade, na verdade, é construída de tantas cidades.”

Para resgatar essa vivência, muitas pessoas negras foram entrevistadas para contar aquilo que de fato aconteceu. Além disso, o trabalho também resgata a memória dos que já se foram. Como, por exemplo, Maria Patrícia, que um dia já foi considerada a “mãe preta” dos santistas. Pelas mãos da parteira, muitos nasceram, inclusive a elite. Mas isso não foi suficiente para manter seu legado vivo.

Fundação Arquivo e Memória de Santos:  MARIA PATRÍCIA A MÃE NEGRA DO POVO SANTISTA
Fundação Arquivo e Memória de Santos: MARIA PATRÍCIA A MÃE NEGRA DO POVO SANTISTA | Foto: Reprodução

A pesquisa continua rendendo seus frutos, se tornou um podcast, um ensaio fotográfico e promete muito mais.

Para conferir, acesse o link do Lab Negritudes. Nesse processo, o jornalista se deparou com a realidade do esquecimento e de como isso afeta a população preta. “Me surpreende o fato de o apagamento da história. É um trabalho em aberto, inclusive não tenho nem pretensão de fechar porque a história está aí há séculos e tem ramificações, mas ela existiu. O que prova mais uma vez uma crueldade, uma violência, que é a estratégia de silenciamento”.

Os resultados da pesquisa vão além de dados, são palpáveis, mostra a necessidade da humanização do negro, ainda nos dias de hoje. Não bastou uma abolição precoce, é preciso mais educação, consciência e resgate histórico.

“Em vários momentos na minha época de escolarização, a gente olhava para essa questão da escravidão como algo genérico, parece que os 400 anos foram iguais. Você não imagina as pessoas que foram escravizadas se relacionando, amando, transando, vivendo, ” declara Luísa.

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